"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Acréscimo



Crescia, sem medo. Inerme, a correr naquela vastidão, com seus pezinhos afoitos e serelepes. Produzia buracos resvalados, pequenas tocas onde faria caber cada sentimentozinho seu. Não sem puxões de orelha de seu tutor: "-Abigail, você quer pegar bicho de pé? Amarelão?" Recontava cada episódio da infortúnia preguiçosa de Jeca Tatu, com ar de repreensão, mas ao mesmo tempo com seus olhos molengos, empapados sob aquela bolsa gorda e pintinhas ao redor. 

Abigail se sentia assim, feito Jeca. Sempre que comia aquele prato de arroz e feijão e se deparava com a enorme vastidão de luz que acachapava a cabeça dos peões. Era muito sol, e quente. Amolengava-se cantando samba lelê. Pena lhe era que esse mesmo sol não esquentava as bóias-frias. Ao menos seu prato permanecia quente, graças ao formidável fogão de lenha que Seu Valfrido mandara construir no anexo da usina. Não que isso lhe tornasse um homem melhor, ou de coração mais macio. Antes pelo contrário. Trazer Padre Tadeu fora apenas uma expiação de culpa, dessas que afligem corações perversos. Queria, antes de controlar peões com sermões do padre sobre a bondade do cultivo e do senhor, encontrar ali no seu complexo universo um confessor, alguém para quem pudesse dizer todas as maldades que inventara. 

Claro que Abigail já havia feito a pergunta a Tadeu. Mesmo tendo crescido sem ter visto de perto o que poderia ser uma vida doméstica, familiar, quotidiana. Via meninos e meninas que chegavam junto dos volantes, a chamar de "mainha" e "paim" algumas almas obinubiladas pelo facão e fogo. Foi quando conheceu  Junim. 

Surpresa ou não, foi a primeira pessoa por quem guardou um afeto. Mal havia completado seus dez anos, mal sabia que emblemas revestiam os problemas da vida extra-canavial. Mal sabia que seu apego era o início da broca que atua no interior de si, perfura, deixa rasgos que nunca se fecham. Não que fosse paixão, pois nada havia ali além das meninices. Mas havia algo muito diferente do que tinha por Padre Tadeu, ou pelo que poderia perceber de sua experiência com Pitoco, seu primeiro cãozinho de estimação, ou por Dona Maria, cozinheira que fazia o feijão tão jeca-tatuzante. Era um apego de inércia, sabia que aquilo não acabaria, se acabasse seria o fim. Foi aí que esboçavam cavaleiros e armaduras, brincavam de pique-esconde em labirintos nem tão criativos assim, apedrejavam calangos, brincavam de atrapalhado mãe da rua entre si mesmos. Junim lhe contara sobre sua vida na zona rural de Ibaiúna, sobre seu pai e sua mãe. Foi o primeiro contato que Abigal teria com essa realidade.

  

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Nascimento de Abigail.

Quero criar. Fiat lux, facio vitam. Fictícia, concordo. Rasguei as entranhas, rejuntei aminoácidos, proteína. Expeli líquidos, misturei todos eles. Uma manipulação que impõe medo. Desses, que fazem ranger dentes, criam carolas apavoradas, rezas de interior, velas acesas. Clonagem, reprodução assistida. Traz medinhos em gente pouca.

Assistam a Abigail. Entre um sufoco e outro grito, cachorrinho, cachorrinho. Aquela cena estava um nojo. Importava pouco de onde viera, aquele ambiente pedregoso, de varas de açúcar nada doces e marmitas, dormitórios coletivos e gosserias de tratos e mãos. Sobrava placenta, sangue, e dor. Muita.

Que referências poderia ter? A monocultura, o capataz que lhe perseguia, Padre Tadeu, as cobras perversas, a queimada. A usina. Os caminhoes.  

Importantes, os caminhões. Eles vão e vem, na velocidade industrial. Chegam pessoas, saem outras, chegam máquinas e sai açúcar. Uma saída. Transe. 

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Deste pedaco de Sulamerica, parte I

Eu vivia até certa fase de minha vida aquela letargia imbecilizante de classe média. Vislumbrado aos caprichos da venda de imagem da boa vida, da bonanca primeiro-mundista, da rejeicao às formas, representacoes e realidades desta terra mazomba. Esse fetichismo tao criticado, que favorece um encanto à imagem da funcionalidade, da precisao, do ideal. Uma coisa meio Nabuco. Deve ser por conta disso que fui estudar no exterior, me encantei com essas facilidades contemporâneas de ir e vir, me enveredei nessa proposta germânica.

Digo que superei essa imaginacao conhecendo mais do Brasil. Estou escrevendo sem muito propósito, mais como uma breve descricao reflexiva dos locais aos quais viajei, pertencentes a esse continente de cruz santa e índole papagaial. 

Recife. Nao, nao quero falar de praias, tapiocas ou cocos, tampouco tubaroes. Me impressionou o tamanho dos arranha-céus em Boa Viagem, certamente um desses milhares de influxos que toma a concentracao de capital, a composicao de grupos sociais. Fico buscando essa cadeia multi-causal, em que talvez a economia acucareira montada desde a colônia tenha proporcionado. E aí se formam as elites locais, e aí elas querem mais, e aí vêm e vao uns movimentos liberais, até que a marcha industrial se torna inevitável, e o boom dos modelos se prolifera. Ao mesmo tempo em que permanecem barraquinhas escambadas no entorno da universidade. 

E resquícios evidentes daquela sociedade descrita por Freyre. Nao é que fui à padaria, na simples intencao de tomar meu desjejum e me deparo com um deles? A proprietária, matrona, gorda e sentada, apenas a contar suas breves notas do caixa. "Seus" funcionários (nao por coincidência, negros), a esquentar leites, servir café, fazer sanduíches de mortadela, limpar o balcao e espantar moscas insistentes. Ainda que as demandas da padaria crescessem vertiginosamente nos breves minutos em que lá estive, a proprietária permanecia inamovível. E os funcionários, todos, a escutarem suas ordens atendendo com um vocativo: -"Senhora?"

Outro ponto desse imaginário e quotidiano resvalados de colonialidade: orgulhou-se uma colega ao dizer que o sotaque pernambucano era o mais próximo ao português luso em toda a regiao nordeste, no sentido de nao se produzir quaisquer sons chiados, quando se pronuncia o "d" e o "t". Ou uma tentativa de resgatar essa língua colonial perdida, mimetismo metropolitano, por parte da atendente da banca de jornais e salgados: "Este salgado, é de quê hein moca?" E ela: -É de queijo e fiambre." Ao que o cliente retruca: "-Queijo e presunto, é?" "-É."

Escapando de anotar, pelas obviedades, a bela paisagem de Olinda, o contraste de céu, mar e coqueiros, ou o casario holandês. As frutas que parecem saciar a interminável sede quase equatorial, caju, cajá, graviola, coco. As identidades que se inventam no espaco urbano: uma cadeia de lojas chamadas "farmácia dos pobres". Um vaivém de homens de regatas, chaves e pochetes, e mulheres com sacolas e saias. E sim, os pernambucanos reclamam do calor, mesmo morando ali desde sempre.

Lugar melhor pra se discutir história colonial nao há. 

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

América Barroca, de Janice Theodoro

Capítulo 1. Descobrimento da América: a comemoração como o narciso da cultura latino-americana

Muitos países das Américas ainda mantêm sua ancestralidade cultural e étnica. A violência dos conquistadores é ponto comum de acordo no processo colonizador. É parte do imaginário comum a ideia de que as relações familiares eram mais estreitas junto às comunidades primitivas modernas, o que geraria um certo senso de recusa inconsciente dessa mesma sociedade tida por arcaica e atrasada. Assim é que também são preservados certos gostos por tradições coloniais, das quais não se quer afastar, mesmo após as independências. Apenas parecem ser modernas, as sociedades americanas de hoje. Pensar uma comemeoração dos descobrimentos é pensar em acontecimentos selecionados e conservados através de uma narrativa histórica, que ganha sentido à medida que é inserido numa grande cadeia explicativa da ancestralidade. Mas se um acontecimento é eleito, nele convergem linhas de desarticulação e rearticulação do relato, conferindo-lhe significados libertadores. 

Os descobrimentos correspondem a duas ordens de significações: uma, a do imaginário europeu do século XV, em que a América deveria se transformar num Novo Mundo, em que os conquistadores deveriam implantar todos os padrões básicos da vida europeia. A outra, tendo por base os fragmentos das culturas pré-colombianas, favorecendo a concepção utópica de sociedades sem classe. Essas duas ordens de significações pretendem satisfazer de forma narcisística o nosso ideal de cultura. A comemoração do descobrimento objetiva, em última instância, desvencilhar-nos de modelos arcaicos cristalizados.

A vertente ibérica que colonizou a América transportou o cenário medieval para o outro lado do Atlântico. As naus traziam, além de suprimentos, objetos que recompunham as estruturas de poder na Europa. A repetição e valorização do passado, para o colonizador, conferiu-lhe certa visão profética do processo colonizador. Valoriza a majestade de vida, da edificação pela pedra e suas imensas catedrais. Heróis são constituídos, tipo Camões. Já a vertente anglo-saxã, constituiu uma cultura que colocava dúvidas aos referenciais de origem. A história da Inglaterra era a de um mundo em crise, distanciando-se das representações heróicas do modelo ibérico. Optou pelas navegações e pirataria, e uma percepção bastante econômica de suas relações com o mundo recém-descoberto. O colono inglês constrói todo seu universo material sem apoio do Estado, o que o obriga a tomar consciência de sua situação real. Já o espanhol incorpora a presença do Estado através da possibilidade de recompor seu imaginário senhorial. Luxo, majestade, fortuna e glória lhes são máximes. Já as fantasias dos ingleses valorizam os elementos da cultura que possam ser apreendidos sob o signo de função. Não constrói para a eternidade, deixa margem para a mudança. É possível romper com o passado colonial. Daí se explica parcialmente a proliferação de fantasias democráticas e mudar estruturas político-econômicas atreladas ao passado colonial. 

A América foi inventada antes de ser descoberta. O descobridor representou seu sonho. O novo surge como reflexo do velho. Era indispensável a implantação de uma cultura material europeia manipulada pelo conquistador, expressões cênicas dos descobrimentos e da colonização. Paralelos entre o massacre do Templo de Tenochtitlán e o retorno de Ulisses, ou entre as pinturas renascentistas e a história norte-americana. Os símbolos da servidão deveriam ser repetidos. Mas as populações indígenas deixavam transparecer outras formas de conduta. A cidade era um lugar privilegiado para a realização de um longo ritual, no qual europeus e indígenas se tornavam artífices do Novo Mundo. A Igreja costumava fazer a tradução de símbolos e corporificar as harmonias do universo. A união das raças promovia a gradual perda da identidade europeia, e um mundo dito novo se fez a partir da renúncia do velho mundo. Uma memória fragmentada organiza, assimila e miscigena, compondo a fantasia da identidade latino-americana. A dificuldade, por exemplo, de se impor se fez presente na ocupação do México: procurou-se estabelecer uniformidade de ruas e fachadas e construções, que obedecessem aos padrões europeus. Além do trabalho de catequese, em que os indígenas aprenderam a imitar, mas não a recordar, como faziam os europeus e seu modo de pensar. O indígena reproduz o desconhecido, nesse sentido. A ruptura com as metrópoles não alterou as relações sociais, mantendo-se intactos os símbolos de poder. 

A oposição entre vencedores e vencidos é um tema de abordagem complexa pois a oposição se constitui quando analisada pelo código europeu. A cultura europeia, transformada em universal, acaba sendo utilizada como padrão único para ordenar e decifrar todas as culturas. Quando se supõe a possibilidade de descrever todas as civilizações, é trabalhada a hipótese de uma memória unívoca, sequencial, marcada pela ideia de progresso. Saimos do confronto para a assimilação. A cronologia que se sustenta pela cadeia de eventos escolhidos a posteriori, reverencia a história iniciada pelos descobrimentos. O conflito valorizado, se torna a raiz de nossa identidade. O que conhecemos, o que restou, são fragmentos esparsos. Resgata-se o movimento de oposição entre dominadores e dominados, e muitas vezes se resgata o passado pré-colombiano com a sensação do esquecimento e da perda. Não é possível se falar em assimilação, uma vez que ambas as culturas (nativa e europeia) não possuíam o mesmo tipo de padrão cognitivo. Vencedores e vencidos é uma terminologia que pressupõe possibilidade de resistência cultural. Um desejo profundo de se recuperar um universo perdido, reabilitá-lo como raiz de identidade indígena nacional. Sonhos de ordem, precisão, perfeição são sonhos onipotentes, sonhos modernos, do homem moderno. 

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Mais Fernando Novais

Capítulo III- Os problemas da colonização portuguesa.


Na segunda metade do século XVIII, convergem duas tendências no comércio colonial e internacional: de um lado, o desenvolvimento irreversível da revolução industrial inglesa exigia cada vez mais a abertura dos mercados ultramarinos consumidores de produtos manufaturados; por outro lado, a política de autonomização e desenvolvimento econômico dos países ibéricos ia cada vez mais dificultando a penetração dos produtos ingleses nos mercados do ultramar pelas vias metropolitanas. (p. 123). As tensões desencadeadas pelo surto industrialista ameaçavam o próprio pacto da Inglaterra com suas colônias. Essa crise é apresentada como desafio à administração metropolitana, que a deveria enfrentar e resolver.

Portugal está em acentuado crescimento populacional. Apesar de alguns autores apontarem tal crescimento como relacionado a um certo incremento das atividades econômicas, o que se observa de fato é o profundo retraso de Portugal no sentido de levar a cabo um projeto de expansão das atividades manufatureiras organizadas em moldes capitalistas, o que já havioa sido denunciado por Alexandre de Gusmão, D. Luís da Cunha e outros. Uma política verdadeiramente protecionista e industrialista não se articula antes da terceira fase do governo de Pombal, que conduziu, segundo o autor, política manufatureira coerente e sistemática- tratou-se de esforço de recuperação. Esse desenvlvimento é tardio, mantem o problema do atraso e decadência. Já o Brasil mantém, em suas estruturas básicas, no arcabouço de sua economia exportadora e nas feições de sua sociedade escravista, os traços fundamentais da vasta zona periférica de exploração das economias dinâmicas do Velho Mundo.

Como Portugal poderia defender seu patrimônio (preservar seus domínios coloniais)? A defasagem do crescimento português em comparação às demais metrópoles europeias, e a pequenez geográfica do reino luso em comparação a seus domínios tornavam a manutenção territorial um problema. É no período do gabinete de Pombal que se lançam as linhas de definição territorial e preservação das fronteiras. A transferência da capital do Brasil para o Rio de janeiro e a do Governo do Maranhão para Belém do Pará demonstra essas preocupações de natureza geográfica. A competição colonial é agravada de forma definitiva, revestem-se de preocupações militares a questão da proteção do território e da integridade das possessões. Havia a preocupação também de certo perigo interno de uso de força e violência (causados pelos naturais do país, p. ex.). Os colonos começam a tomar consciência das oposições de interesse, a assimilar ideias revolucionárias, a aderir a ideias de contestação. Uma vez rompido o primeiro elo - a independência das colônias inglesas da América Setentrional - todo o arcabouço do Antigo Regime entra em crise. Por isto mesmo, a defesa do patrimônio colonial significava também a manutenção do absolutismo na Metrópole.

A importância da filosofia crítica da ilustração passa a se constituir como parte integrante do processo de alteraçao estrutural. Convergiam argumentos idealistas e argumentos utilitários para configurar o anticolonialismo das Luzes, que criticavam a dominação política da Metrópole, exclusivo comercial, escravismo e tráfico, a América voltava a penetrar no horizonte intelectual da Europa. A face reformista das luzes que incidirá mais sobre a metrópole, na colônia, a face revolucionária. A literatura iluminista será recorrente nas estantes dos intelectuais brasileiros desse período, que passarão a tomar consciência de que a Europa estava chupando toda a substância das colônias, de que o rei era como qualquer de nós, e que isso de religião é peta.

O que se tentará fazer é impedir o enfraquecimento do exclusivo metropolitano, coibindo o contrabando através de severa fiscalização e legislação. A metrópole não podia abrir mão do sistema. Curioso dizer que o contrabando era ele também um flanco de entrada de livros proibidos e mercadorias que eram impedidas de chegar aqui. Uma certa resistência, por parte dos colonos, à prática do exclusivo metropolitano do comércio, vai se engendrando com o próprio desenvolvimento da colonização. O regime promovia incrível alta dos preços e escassez das mercadorias estancadas, e criava condições para o florescimento de uma sinistra casta de atravessadores. Claro, o sistema era criticado pelos teóricos do mercantilismo ilustrado. Como também o foram as Companhias de Comércio. Há uma fissura entre os interesses dos mercdores e os interesses da Metrópole.

Também era necessário reover os óbices internos que tivessem operado no sentido de travar o desenvolvimento industrial e canalizar as vantagens da exploração colonial do sentido de superar a acumulação primitiva e desencadear um processo de desenvolvimento manufatureiro. Nessas condições, a própria assimilação, pela Metrópole, dos estímulos, engendrados pela exploração das colônias, se constituía num problema. Assim é que o Brasil vai se tornando cada vez mais vital para a sustentação da metrópole. Várias linhas de argumentação são conduzidas para justificar o atraso da metrópole portuguesa: uma que estabelece que o período filipino teria impedido o reino de cumprir sua vocação ao progresso com D. Sebastião, em clara interpretação ufanista: uma segunda vertente, que propugna a ideia de que a perda das feitorias do oriente, a descapitalização de Portugal pelos espanhóis e o atraso do Reino pela decadência espanhola. Uma terceira linha atribui o atraso do reino à ação expoliativa da Inglaterra. E uma última linha explicartiva afirma que as próprias colônias (falta de gente, atraso da agricultura, não desenvolvimento manufatureiro) seriam responsáveis pela ruína de Portugal.

Esta última linha é exposta pelo autor como capaz de explicar parcialmente a decadfência do Reino, mas que certamente se somavam a vários problemas que se ligavam uns aos outros, em que o Portugal da época moderna parece configurar a situação de cristalização do capital comercial, que cria classes não-produtoras, homens de negócio, gente da nação, reinvestindo-se na riqueza móvel, se bloqueava a transição da acumulação mercantil para o setor produtivo. A formação social decorrente do quadro econômico é, portanto, fator de manutenção das estruturas arcaicas e do engessamento da modernização/industrialização portuguesa.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Começa a saga cronometrada

Não faço ideia se tem alguém lendo meus posts. Mas hoje começa uma saga do desespero. As seleções de mestrado batem às portas, as leituras ficam para trás. Precisando reativar a memória, vou rabiscar umas espécies de resenhas/resumos do que já li. Transformando meu blog em um "porto-seguro" de informação um pouco mais sistematizada: tudo bem, leitor, se vc não se interessa por história cultural ou social.

Um espaço meio egoístico, este. Mas em breve volto a trazer coisas criadas por mim mas com finalidades não-egoístas.

Vou começar com o livro do Fernando Novais, tão propagado como um dos "revolucionários" historiadores pela geração USP, que "inaugurou" uma análise do processo de desmontagem do Sistema Colonial não apenas com os olhos intestinais e tradicionais dos intérpretes (sociólogos e economistas tributários de uma historiografia muitas vezes desenvolvida com alguns tons marxistas, como Caio Prado Júnior e Celso Furtado), mas trazendo a si certa posição de historiador "hard" (se é que assim podemos colocar), conferindo uma visão estruturante e globalizante do colapso do Antigo Regime e do próprio Sistema Colonial, pari passu.

Revolucionário ou não, o livro Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808) lança mão da tese de que "a política (portuguesa) relativa à colônia ("brasileira") se manifesta como resposta aos problemas efetivos que a manutenção e a exploração do ultramar apresentavam à Metrópole" (p. 5). O fenômeno específico é o quadro de certo aparato mental dos dirigentes metropolitanos que, por meio de normas e ações, conduzem as transformações inseridas no quadro maior, de mudanças estruturais e colapso do Ancién Régime.

Capítulo I- Política de Neutralidade.

A expansão ultramarina e colonial é um processo inserido como elemento decisivo no jogo político das principais potências europeias, as quais buscavam sua hegemonia. Entender o surgimento de cada potência europeias significa estabelecer as preponderâncias sucessivas que é parte integrante do próprio processo de formação dos estados modernos.

Portugal e Espanha, superados por outras nações e colocados em condições secundárias no curso da modernidade, conseguem se manter relativamente autônomos e manter suas possessões coloniais. Portugal consegue manter seus domínios, atravessando a sucessão de crises e tensões, ao alinhavar-se à Inglaterra e constituir o Brasil como núcleo essencial da máquina colonialista. Inglaterra garantia a proteção se Portugal concedesse vantagens comerciais no mercado ultramarino. A preservação das colônias (e sobretudo das possessões na América Portuguesa) se torna condição de manutenção da própria existência de Portugal- é moeda de troca para as proteções e intervenções inglesas. Resumindo: Inglaterra protege as colônias e a metrópole para explorá-las em seguida. A ameaça vinha da Espanha bourbônica, apoiada na aliança com a França, que tinha planos de refazer a união ibérica. O autor diz que essa política portuguesa é de neutralidade (coisa com que não concordo)

A extensão e importãncia das colônias ibéricas só foi mantida graças à rivalidade entre Inglaterra e França, e a diferença entre posição política e econômica das metrópoles também. O evento que aponta a crise do Sistema Colonial mercantilista é a independência das colônias inglesas. A defasagem entre a posição econômica política e econômica das metrópoles é, por si só, elemento intrassistêmico que justifica a crise superveniente.

Capítulo II: A Crise do Antigo Sistema Colonial

Discute-se o sentido comercial da colonização moderna, os elementos caracterizadores do Antigo Regime: a centralização política, sociedade estamental, capitalismo comercial, expansão ultramarina e colonial são caracterizados, e suas decorrências (escravismo como tendência à primitiva acumulação de capital, consytituição de economias de subsistência voltadas a seu próprio consumo- daí a necessidade de se colonizar para o capitalismo - criando mecanismos em que se impunham as formas de trabalho compulsório). discutidas como fatores da montagem e organização do sistema colonial. Esses fatores desembocam na crise do colonialismo mercantilista, uma vez que a economia escravista e a produção para o capitalismo europeu solidificavam as bases sociais num binômio senhor-escravo: a linha de desenvolvimento econômico é a de complementar a economia central metropolitana. As colônias são o fator fundamental para a acumulação primitiva de capital das economias centrais. Além de ampliarem o mercado consumidor de produtos manufaturados, criando os pré-requisitos para a revolução industrial. A dinâmica do sistema, portanto, ao funcionar plenamente, vai criando ao mesmo tempo as condições de sua crise e superação. Nesse sentido, a competição das potências no Ultramar é furiosa, a Inglaterra conquista seu espaço hegemônico após a guerra dos Sete Anos e antes da independência dos Estados Unidos da América do Norte: fortalece seu exclusivo metropolitano com suas colônias, acentua a a penetração nas colônias ibéricas, através da metrópoles ou mesmo do contrabando. A ruptura do pacto, feita pela independência dos EUA, a possibilidade se torna realidade, as formas políticas republicanas acentuavam o quadro de crise não apenas do Sistema Colonial, mas de todo o Antigo Regime.   

A resenha continua.





quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Escravizar, conquistar, aniquilar: bem-vinda, brava gente!

Colando a postagem aqui que nunca sei o que pode acontecer com essas postagens por lá...

"...peço licença para uma breve digressão, nossa milícia senhor é diferente da regular que se observa em todo o mundo. Primeiramente nossas tropas com que imos [sic] à conquista do gentio brabo desse vastíssimo sertão, não é de gente matriculada nos livros de V.M. nem obrigada por soldo, nem por pão de munição; são umas agregações que fazemos alguns de nós, entrando cada um com os servos de armas que tem e juntos imos ao sertão deste continente não a cativar (como alguns hipocondríacos pretendem fazer crer a V.M.) senão adquirir o Tapuia gentio brabo e comedor de carne humana para o reduzir ao conhecimento da urbana humanidade, e humana sociedade à associação racional trato, para por esse meio chegarem a ter aquela luz de Deus e dos mistérios da fé católica que lhes basta para sua salvação (porque em vão trabalha, quem os quer fazer anjos, antes de os fazer homens) e desses assim adquiridos, e reduzidos, engrossamos nossas tropas, e com eles guerreamos a obstinados e renitentes a se reduzirem: e se ao depois nos servimos deles para as nossas lavouras, nenhuma injustiça lhes fazemos, pois tanto é para os sustentarmos a eles e a seus filhos como a nós e aos nossos: e isto bem longe de os cativar, antes se lhes faz um irremunerável serviço em os ensinar a saberem lavrar, plantar, colher e trabalhar para seu sustento, cousa que antes que os brancos lho ensinam, eles não sabem fazer: isto entendido, senhor?"

(Carta de Domingos Jorge Velho, dirigida ao Rei de Portugal, D. Pedro II de Bragança, na ocasião da destruição da resistência do quilombo dos Palmares. In : ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas. Ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 244.)

É curiosíssima a pretensão do homem de armas, a serviço da Coroa, no trato das gentes do sertão. Conforme se observa no trecho acima, as formas de dominação são atestadas pela obrigação ao trabalho compulsório nas lavouras e roças. Escravidão, sem tirar nem por. Por mais que fosse possível encontrar desargumentos ou injustificações da escravização indígena, com base no imaginário vigente à época, de uma vocação natural do negro africano ao trabalho e a consequente desvalorização (ou mesmo proibição ética e religiosa) de escravização dos gentios da terra, almas destinadas à salvação divina pela catequização, sua existência não pode ser negada.
Existira e precisava ser justificada. Se na América Espanhola o índio não fora feito escravo, mas submetido aos sistemas de trabalho compulsório em minas e plantations sob a vigilância de senhores encomenderos e capatazes, na América Portuguesa o indígena não terá a mesma sorte de uma sistema econômico propício a formas de dominação em rodízio de trabalho, como nas minas de prata de Potosí (dada a dispersão das tribos e dos agrupamentos aqui na Terrae brasilis). E por mais que o indígena submetido a tais tarefas fosse liberado após o período em que estivesse sob o jugo dos conquistadores, certamente seu retorno às origens não ocorreria nos mesmos termos.
O processo de conquista territorial e populacional na América Portuguesa proporcionava, portanto, uma gradual "inserção" dos cativos (sim, pois estão a ser dominados em cativeiro, em regimes de trabalho compulsório) à lógica do homem conquistador. Se a Igreja não se estendera em todo o território em missões de catequização, seu insucesso na empresa de completa conversão dos indígenas se observasse, o papel de inserção desse cativo ao "processo civilizador" (termo de péssimo gosto que menospreza o fato de civilização ser uma experiência de qualquer cultura humana) só seria possível pela lógica moderna da organização dos mundos do trabalho. O homem que trabalha, que se devota ao esforço diário de sua justificação, de sua fundamentação na ordem do mundo, marcado pela graça e pelo vínculo amoroso (conforme explicitamos no texto anterior), é o homem moderno. Fé passa a caminhar, de mãos dadas, com o trabalho no mundo moderno. Só a fé salva. Só o trabalho dignifica. Eis a lógica moderna, de lançamento dos alicerces mais sólidos (e ao mesmo tempo, mais assustadores) do capitalismo.

Caminhos do ouro, descaminhos da Justiça

Resolvi colar esta postagem de minha autoria aqui, já que nunca se sabe o que pode acontecer com um blog que não é seu.

Cada anno vem nas frotas quantidades de Portuguezes & de Estrangeiros, para passarem às Minas. Das Cidades, Villas, Reconcavos & Certoens do Brasil vão Brancos, Pardos, & Pretos, & muitos Indios de que os Paulistas se servem. A mistura he de toda a condição de Pessoas: Homens, & Mulheres: Moços, & Velhos: Pobres, & Ricos: Nobres & Plebeos: Seculares, & Clérigos: & Religiozos de diversos Institutos, muitos dos quaes nao tem no Brasil Convento, nem Casa.
Sobre esta Gente quanto ao temporal não houve atè o presente coacção, ou governo algum bem ordenado: & apenas se guardão algumas Leys, que pertencem às Datas, & Repartiçoens dos Ribeiros. No mais não há Ministros, nem Justiça que tratem, ou possão tratar dos castigos dos Crimes que nao sao poucos, principalmente dos homicidos & furtos."
IN: ANTONIL, André João. Cultura e opulencia do Brasil por suas Drogas e Minas ...Lisboa: Na Officina Real Dislandianesa, 1711, pp. 136-137.

A situação apresentada por Antonil é a que precedeu a separação da Capitania de Minas Gerais da de São Paulo, fato ocorrido em 1720. O interesse metropolitano somente se justificou no momento em que as Datas auríferas haviam sido devidamente estabelecidas, e as revoltas pela posse das minas, quais sejam, a Guerra dos Emboabas e a Revolta de Felipe dos Santos, efetivamente deflagradas e contidas.
Um novo pedaço da América Portuguesa se estabelecia com a ocupação de um imenso território adentro, com promessas enormes e desafios ainda maiores à dinastia de Bragança, que se via pressionada pela política de alinhamentos europeia (a Casa de Bourbon conquistando espaço junto à Espanha, intimamente ligada à França enquanto Portugal, diante da perda de territórios como de Sacramento e da anuência com as ocupações espanholas na Amazônia, articulou - ou selou- seu enredamento com a Inglaterra). O fluxo de imigrantes, esperançados pela promessa de riquezas, empurrava ainda mais a Coroa a agir na Colônia com braços fortes, até então não vistos cá nos trópicos, estruturando uma administração que não somente fosse capaz de fiscalizar, impedindo o contrabando, mas sobretudo de punir, evitando sedições e garantindo a "justiça", a "ordem", "a paz".
Esgoelavam-se os prometidos do ouro, revigorava-se mais um dos muitos capítulos da história da escravidão, num inagurado ciclo econômico, reproduzia-se um (ainda que relativamente tímido) ritmo de vida inédito, o urbano, estruturavam-se sociabilidades completamente novas. Eram os muitos homens de toda procedência, em busca de afirmarem sua existência na lógica da dádiva e da conquista.
A quem prestava o Direito, a quem era feita a Justiça, senão aos que nesta terra tudo queriam, tudo sonhavam e nada temiam? Para quem serviam as Leis? Tudo novo, nada novo...Estável lógica, essa da história da riqueza humana.
Engraçado como as decisões nos entorpecem, tragam, revolvem as partículas desse "eu" tão perdido, o sujeito desconhecido, pisoteado, retorcido, esfumaçado pelo convívio. Não, não sou fruto do meio. Mas sou um enxerto nele.

Quisera acreditar em escolhas puramente racionais, meticulosas, calculadas. Elas só são tomadas porque o têm de ser. Inevitável é escolher.

Remeto ao interessante trabalho de Natalie Zemon Davis, com o qual estou tendo contato nesses últimos dias, Culturas do povo. Os Griffarins da França quinhentista, homens operadores de máquinas de prensa gráfica, a revolucionária- ou nem tanto - engenhoca de Johannes Gutenberg, poderiam ser apenas frutos de seu meio: liam, ainda que o básico, para operar caracteres gráficos. Homens abertos à inovação técnica, abertos às investidas sedutoras do ascendente protestantismo. A máquina que operavam, operava mudanças em suas visões de mundo: por um lado, alguns se vendiam ao preço de banana, os chamados Forfants, para executar semelhante serviço. A desigualdade é certamente fruto da necessidade econômica, mas as duas estão a se interpor a todo instante. Não necessitassem de qualquer vintém, não estariam os Forfants a vender sua mão-de-obra a preço tão baixo. Não necessitassem as instituições de expedir papéis e comunicar-se em impressos tão velozes, não precisariam de Forfants. A lógica capitalista depende dessa mola da técnica: inventar a necessidade é inventar a desigualdade. Quem puder pagar pela necessidade criada está investindo na possibilidade futura de novas necessidades serem inventadas. E quem não puder pagar, que arrume uma maneira para manter sua própria existência. Não se vende mão-de-obra, se atropelam potencialidades não desenvolvidas. A lógica é simples. Qualquer "outra" necessidade, que não a mais primordial do homem, é fruto do desenvolvimento tecnológico. Realizá-la depende de novos investimentos, ou de atropelar a própria potencialidade, operando a máquina, a preço módico.

É o início da desigualdade na civilização industrial. Escolher entre as Companhias criadas com o fim da sociabilidade e cooperação enre seus membros, ou a possibilidade das novas sociabilidades de certo tentador progressimo protestante? Não há escolha. O projeto da Igreja Católica venceu em Lyon, junto aos agentes da comunicação impressa, aproveitando-se da polarização do conflito entre Griffarins e Forfants. A pergunta é a mesma: escolheram? Racionalmente?

As demonstrações da autora sugerem bastante que não.

quarta-feira, 21 de julho de 2010



Esperaram muito tempo, ocupações sem fim, desordens do tamanho do Belvedere, abrutalhamentos urbanos da ordem do Buritis, para finalmente ser aprovada nova lei de parcelamento, ocupação e uso dos solos urbanos de Belo Horizonte. Diminuem o tamanho das edificações, acirra-se a fiscalização sobre obras, regulamentam-se as dimensões de áreas livres e varandas. Alturas de prédios em alguns bairros passam a ser limitadas também.


Antes constatar as ilhas de calor, a excessiva especulação imobiliária, o crescimento vetorizado -ou setorizado- e a extrema desigualdade e concentração da ocupação urbana.

E ainda há o problema da Granja Werneck, sobre a qual querem construir a Vila da Copa. Em área quilombola.

É aqui que eu moro, e muitas vezes me pergunto: é aqui que eu quero ficar?

terça-feira, 20 de julho de 2010

Bodas

E eis que me volto às voltas mais voltaicas da vida. As escolhas vem e vao, as palavras pesam, as promessas despencam, a carruagem anda. Estava lá a criatura ingênua, a preencher a primeira ficha de inscricao para o Vestibular da UFMG. Faria como treineiro, para testar seus conhecimentos, para o ano seguinte. Estava certo, desde seus quinze anos, de que cursaria Direito. O curso dos diplomatas, dos advogados, dos homens engravatados, que falam bonito e ganham dinheiro. Nao tinha visto curso cujo curso fosse tao histórico, em movimentos crescentes de conquistas: levantavam vozes em Paris, acirravam-se lutas em Havana, e olha só, discursavam os senadores romanos. Uma imagem poética, discursiva, ideal.

Assinalou História, foi aprovado, acreditou ser simples entao passar no ano seguinte para Direito. Foi o que fez. Comecou com paixao, terminou com ressalvas. Muitas. Descobertas e acertos. E preferências.

E viu-se voltando à História...Ela voltando nele. Dando choques de água fria. Absorvido pela sensacao de entender os homens, já que as leis deles pouco dizem. Precisava ouvir o mundo pela boca dele mesmo. E vê-lo em seu curso. Conflituoso, nao apaziguado.

Casei-me com Clio. 

De-banda

Estava à toa na vida, 

Nenhum amor me chamou

Chamei pra ver se respondia.

Veio quem eu menos queria,

Esperei mais um tempo.

Nao sei se isso adiantou.

Olhei, frêmito, afoito: o presente era eu. O futuro era o amor, 

O passado, a ilusao.

Esqueci de meu tempo, abri o caderno, esperei recordar o irrecordável: que viessem as lembrancas.

Imaginei situacoes. Lugares, prazeres, fogaréus fátuos. Tensoes superficiais.

Cruzava olhares, horizontes, dados.

Me perdi. Sem nunca ter me achado.


terça-feira, 6 de julho de 2010

Relatos de cidade crua

Nao preciso ir longe, a nenhuma metrópole de filme de gângsters, nem mesmo ao Rio de Janeiro do frissom midiático. Violência bate na cara, pode ter sido só um arranhao, leve tapa. A dor pode ser graduada. Objetivamente, fui espectador. Poderia ser vítima.

Cena 01. Chegamos eu e mais três amigos num bar, ali na Serra. Um deles diz à motorista do carro se nao preferiria pará-lo mais à frente. Achara o lugar estacionado muito escuro. Eu, ingênuo, disse, bobagem, estamos próximos do bar e do movimento. Nao há perigo.

Pois havia. Saímos eu e a motorista, mais cedo, e indo pegar os pertences dos colegas. Passamos por um carro cujo vidro lateral estava com um senhor rombo. Um buraco grotesco, certo frio e silêncio incomodante. Sucederam-se gritos, coisa como gente, ali, pega ladrao, pega ladrao, repetidas vezes, cada vez em tom mais alto. Luzes vermelhas tremulavam, irradiadas entre folhas de trepadeiras de muro. Vi um homem pisando em outro, na íngreme calcada de concreto da ladeira. E ouvi gritos contínuos. Arrancamos o carro. Gelo interior. Abracamo-nos.

Cena 02. Sábado, oito da noite. Ia ao concerto de piano da graduacao de um amigo. Coincidentemente encontrei uma amiga no ônibus, 2004, que também ia ao concerto. Conversávamos sobre trivialidades quaisqueres, receitas da TV ônibus, racismo e apartheid, colonizacao holandesa na África do Sul. Entrou uma voz esganicada, confusa, a berralhar coisas ininteligíveis no ônibus. Pensamos em louco, drogado, algo mais corriqueiro. Nao era. Avancou a catraca, e pos à mostra sua arma de fogo na cintura. Havia um segundo, a auxiliar a coleta dos pertences. Exigiu celular e dinheiro. Eu, apenas com meu pobre celular Nokia q comprei em 2007, com o dinheiro da primeira bolsa de pesquisa que obtive. Nem tirei do bolso, nao tinha prestado atencao na exigência do celular. E doze reais. Os homens ignoraram tamanha pobreza, arrancaram os 50 reais da mao de minha amiga. Um pai em desespero agrrou sua filha. Desceu do ônibus. Havia desobedecido a ordem dos assaltantes. Desceram e permaneceram apontando a arma aos dois acuados. O ônibus seguiu. Muita raiva, irascíveis alguns passageiros, outros chocados. Ouvi um: "a gente trabalha sábado até essa hora pra merecer isso?" Murros na parede do ônibus. Choros e solucos. Pedia que parasse. Dois pontos depois parou. Gritaram à viatura, estacionada diante do Colégio Militar, para que pegasse os homens. Foram. Vacilantes. 

Descemos do ônibus. Muitos foram prestar a ocorrência. Disse a minha amiga que recuperar aquele dinheiro seria quase impossível. Quantos ônibus passam pela Antônio Carlos por minuto? Pegamos um até o final de nosso destino, a UFMG. Os autores do crime, provavelmente, outro, com outro destino, para bem longe dali. 

Me senti completamente espectador, atordoado, sem queda de qualquer ficha.

Prefiro nao acreditar em converseiro fiado. Violência está aí, para qualquer um que a presencie. Ou infelizmente a sofra. Seguranca pública, nem tanto. Saber que se está seguro no meio social é muito mais difícil que saber que nao se está. As possibilidades sao inúmeras, os fatores, complexos, os agentes, diversos. 

Comunitarismo fraquejado

Este momento em que escrevo é pernicioso. Produz inversões sem fim. Estabelece não eixos, mas rupturas em quaisquer possibilidades de alinhamentos: estamos diante de uma bobajada chamada comunitarismo - isso mesmo, uma espécie de desfibrilamento cardíaco do curso tradicional que o capitalismo de matriz liberal produziu.

O indivíduo cercado em sua individualidade, seu potencial para o consumo e para as atividades que marquem sua "importância singular" : lógica de identidade construída por uma subjetização da objetividade, degringola a cada passo da civilização pós-industrial. 

Subjetivização da objetividade é, nesses termos, o resultado esperado da complexa teia social: alguém é o que objetivamente pode ser. Num materialismo que dispensa qualquer referência a autores, o que se observa é que os dados da existência humana são aqueles que objetivamente compõem o traço da especificidade, da singularidade, da composição desse "eu", tão abstrato, de cada um: com quem sai, que lugares freqüenta, onde trabalha, qual é sua formação, que faz durante seu dia-a-dia, quantos reais possui em sua conta bancária, que música ouve, que comida come, que livros lê, que filmes assiste.

Tudo isso se estabelece por condições materiais, certo. Mas esse mesmo indivíduo, que depositava confiança em sua inextricável liberdade, perde toda sua orientação na aniquilação diária que a mesma sociedade de massas inventou: convivem sofrimentos, fomes, pestilências, insalubridades, catástrofes em territórios esfrangalhados pelo colonialismo, pelo neocolonialismo, pela permanência atroz de estruturas de subordinação e misérias sem fim.

Resolver tais problemas não parece solução, tampouco prioridade. A lógica maior é a de respeito alimentado como um gordo novilho cevado, a toda e qualquer diferença, sem, no entanto, que ela nos chegue a incomodar. Estou falando de um discurso perverso, como esses de alguns países europeus, que querem ter no Brasil exemplo de tolerância à diferença, que acreditam que coabitar uma cidade com milhares de barracões e algumas torres de luxo é exemplo de cultura comunitária, de paz e boa convivência. Cultura que esbofeteia todos os dias nossas caras, com uma violência explícita e ácida.

Se há que se falar em comunidade, comum + unidade, ela tem que existir nas condições mais simples, imediatas, materiais, que contribuam não à formação da subjetividade, da individualidade (e de indivíduos que se acham integrados de alguma forma que ninguém sabe qual é), mas acima de tudo, de sua composição social, de sua efetiva integração a um corpo assim chamado de comunidade.




Políticas para a indústria brasileira: cadê?



Os números do IBGE divulgados recentemente apontam uma desaceleração da produção industrial do Estado de São Paulo. Responsável pela maior parte da produção industrial do país, o estado desacompanha o ritmo de ligeiro crescimento do indicador PIA do país.

Sim, é verdade que a produção industrial indica o fator mais importante de uma economia, e não estou me filiando a nenhuma corrente de pensamento econômico: produção industrial demanda serviços, e matérias -primas, o que por óbvio fomenta as atividades do setor terciário e primário. É o verdadeiro coração de uma economia, na lógica mais simples que há a se fazer.

E, obviamente, depende de políticas que incentivem tais atividades: planejamento tributário, infraestrutura de transportes, energia, etc. O que me incomoda é: planos para o fomento da atividade industrial desconcentrados do polo sudeste ainda não existem. PAC, ou qualquer outro ainda são palavras frouxas, sem uma efetividade que salte aos olhos. Vejamos os discursos dos candidatos à Presidência nesse sentido. Aguardo com certa ânsia.   

Bete Balanço.

Estou num momento bete balanço. Dor e grana parecem próximos. Basta seguir a estrela, um brinquedo de "star". Afinal, nada aqui se é. Se está. Um brinquedo de estar. Brincamos sempre de estarmos algo.

Se o futuro é duvidoso, necessário é vir com tudo. Pois estes, nunca cansam. São verdadeiros Sísifos.

O vídeo da canção: http://www.youtube.com/watch?v=Wpwoi7EtW4w&feature=player_embedded

Indignado mesmo!

O post só cumpre uma utilidade pública: O sítio do Arquivo Público Mineiro está desativado por motivos de uma relevância esdrúxula. Informa o site que “Este site está desativado em função da legislação eleitoral até que o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) oficialize o término das eleições”.

Mais uma vez, está-se diante da confusão entre serviço institucional e propaganda antecipada. Tudo porque o candidato tucano Antônio Anastasia foi multado em 5 mil reais pelo Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais por estar fazendo propaganda antecipada, ao conceder entrevista ao síte Agência Minas, vinculado ao Governo, segundo li no Estado de Minas.

Governo se difere de Estado, já cansamos de saber. Que cargas d'água de propaganda antecipada o site do Arquivo Público Mineiro poderia fazer? Anunciar suas obras de ampliação? Bom senso nessas horas deve sempre falar mais alto, em especial a um candidato da situação. Impedir um serviço prestado pelo arquivo (consulta à documentação digitalizada) é que não.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Enrubrecimento

Teresa nao podia esperar. Eram anos convivendo com sua asma renitente, sua magreza ínfima, aquelas olheiras profundas. Sua origem nao era conhecida: tia Doca, mais que matrona, era a mae perversa de Teresa. Nao tinha mais ninguém que nao aquela velha obesa, a resmungar sobre o preco das carnes, entre um cigarro e outro que acendia e sufocava a pobre moca.

Morava ali, naquele barracao sem divisórias, misto confuso de panelas, caes, fogao e cama. Rangiam os vizinhos vez ou outra seus recorrecos e assobios, em rodas de samba das quais Teresa nunca quis saber de participar. Era uma alegria da qual nao podia compartilhar. Até aquele dia. Nao podia esperar. 

Meteu na bolsa os poucos dinheiros que ganhava como servicos gerais, e foi à Quinze de Marco naquela manha de sábado. Calor. Formigueiro humano. Pisadas. Pocas d'água. Pastel. Fumaca. Choros de criancas. Berros. Imundície. 

Nao importava. Em terra onde nao há carne, urubu é frango. Comprou um vestido, resgatou qualquer resto de autoconfianca, pos um batom do mais vulgar e um ruge na cara, e se estendeu até o anoitecer, naquele vaivém frenético. Hora em que simplesmente foi ao cinema. 

Era um filme antigo, com Bette Davis. Se reconhecera naqueles olhos, idênticos aos seus quando marejavam. 

Nunca se pode esperar. 

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Meu último sonho




Curioso. Discuto a imagem dos psitacídeos em minha mente. Tem o estigma do deboche, da irreverência, da contestacao. Meu periquito, foi com ele que sonhei. 

Estava lá dentro de sua gaiola, sempre nervoso, gritalhando seus sons sem melodia alguma. No sonho, meu pai achava que os jovens canários estavam muitos sozinhos em suas gaiolas. Precisavam de companhia. Foi quando teve a brilhante ideia de tranferi-los de suas pequenas jaulas para a do periquito. 

E por algum motivo mágico, depois desse fato, passei a entender o que falavam os pássaros. Dizia o periquito:

-Vocês canários sao muito idiotas. Vivem a cantar, cantar e cantar, enquanto eu denuncio toda a opressao e as mazelas do mundo. Um mundo que reproduz pássaros para mantê-los presos é, no mínimo, injusto. E vivemos aqui, à base desse alpiste ruim. Dieta variada nos é inexistente. 

E continuou a denunciar sua insatisfacao com a condicao de vida dos pássaros. Os canários pareciam nao dar muito os ouvidos. Completou:

- Vocês tem esse bico mole e curto, que só lhes serve para cantarolar. Eu pelo menos tenho um bico duro e pernas fortes, e com eles, posso abrir a porta da gaiola, mas nao consigo dela sair, por ela se fechar bem em cima de mim. Mas posso auxiliá-los a sair, para que conquistem o mundo. 

Dei as costas a esse converseiro passaral. Pensei comigo, quanta bobagem! Decorrido certo tempo (imposivel de se medir na longueza de um sonho - pode ter sido uma hora ou um lapso de segundo!), voltei-me à gaiola e vi apenas o periquito lá dentro, ainda reclamando. Seus companheiros haviam ido embora, para conquistar o mundo. 

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Assim, congelado. Nada de assado.

"-Avante, cavaleiros! A derrocada dos ídolos fajutos está próxima. Vamos executar nossas conquistas sem piedade. Pilhem, destruam, matem, estuprem. Ganhem a glória. O descanso eterno será de vocês!

-Senhor, nao consegue ver? Estao todos congelados...

-Brrrr..."

Óia a Onca!

Hoje me agucou a curiosidade uma notícia veiculada na Folha de Sao Paulo. Confundir a esposa com uma onca nao é algo de todo incomum. Meu tio mesmo apelida carinhosamente sua mulher de Dona Onca. 

Trágica a história, mas num nível de patetice absurda. Error in persona é uma das causas de exclusao de culpabilidade. Diz a legislacao penal que deverao ser levadas em conta as características da vítima virtual. Mas no caso em tela a vítima virtual (a onca) nao é pessoa, ainda que subsistisse o dolo do marido em matar um jaguar selvagem. Nao é possível se falar em error in persona.

Fico pensando sobre a legítima defesa, a ser provavelmente levantada no caso: a mata, a pescaria, o ambiente hostil dos sertoes brasileiros. 

"Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem"

Ainda que crente de repelir agressao injusta iminente ao seu direito à vida ou integridade corpórea, sempre as más línguas vao dizer: era uma onca aquela mulher. (Mas vamos combinar, confundir a mulher com um animal quadrúpede, em plena luz do meio-dia é um bocado estranho). Eis aí a notícia: 

sábado, 29 de maio de 2010

I-Mensa

Entre um purê de batata, um arroz, e umas colheradas grudentas de suflê, alguns olhares trocavam. Uma bandeja, um redor amplo, vozes, restaurante universitário. Diziam. Olhavam-se uma conversa de atenções recíprocas:

-Sabe, nunca entendi isso de saudade. Acho que é insatisfação com o presente. Que parece cada vez mais demorar a passar. Ao final, envelhecemos e nos tornamos velhos saudosistas, jogando damas na praça.

-Você sabe que se a vida passa, a culpa é de quem vive. Mesmo que insatisfeito com o presente. As pessoas passam, as coisas perecem, a matéria é destruída, transformada ou qualquer baboseira que Lavoisier tenha dito. Mas a lembrança, essa permanece.

-Queria não viver delas. Acho que me iludo às vezes.

- Se está iludido, é porque vive. Outra coisa não poderia fazer nesse jogo, em que pelo menos termina algum dia. E sem vencedores ou perdedores que não um só. Diariamente.

-Te amo.  

Cotas raciais em audiência.



Alguns trechos que permearam a exposição de motivos em audiência no Supremo Tribunal Federal, sobre as cotas raciais no sistema de ensino superior público brasileiro, levantados pelo Senador Demóstenes Torres, do DEM-GO:

"Todos nós sabemos que a África subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo, para o mundo islâmico, para a Europa e para a América. Lamentavelmente. Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos. Mas chegaram. (...) Até o princípio do século 20, o escravo era o principal item de exportação da pauta econômica africana."
"Nós temos uma história tão bonita de miscigenação... [Fala-se que] as negras foram estupradas no Brasil. [Fala-se que] a miscigenação deu-se no Brasil pelo estupro. [Fala-se que] foi algo forçado. Gilberto Freyre, que é hoje renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual."

Lamentavelmente, o Senador parece levar em conta certas interpretações distorcidas, anamórficas sobre a formação social brasileira. Uma delas é essa insistência em bater na tecla da tese de Gilberto Freyre, como se a escravidão no Brasil tivesse sido algo leve, menos violento, mais ameno. Sabe-se muito bem que a implantação do regime de escravidão encontrou largas condições de desenvolvimento na economia atlântica, além de buscar caminhos e descaminhos para a acumulação do capital pelas classes mercantis dirigentes.

Temos que tomar muito cuidado com algumas análises. Não podemos observar o fenômeno do tráfico negreiro como se ele fosse um arranjo ou um instituto inerente às sociedades tribais subsaarianas, e tão somente, menosprezando a formação do sistema escravista colonial pela participação de outros agentes.

O sistema escravista colonial reproduziu diferentes interessados diretamente no tráfico: "brasileiros"(colonos), "angolanos" (colonos), portugueses reinóis, líderes tribais. Toda a rede de relações está criada em torno de um sistema que acachapa a organização dessas sociedades africanas (o número estimado de escravos arrancados de sua terra para o Brasil chega à cifra dos 06 milhões, do período colonial ao Império) para servir à formação de um capital primitivo, que alimenta as formas de produção mercantil e garante a subsistência de toda a exploração colonial.

Almas são o grande negócio dos homens.

É tragicômico procurar identificar responsáveis históricos, culpados primordiais, num processo multifacetado, fragmentado, irregular. Se a desigualdade existe, patente, evidente, a culpa é presente, é pela inamovibilidade, pela omissão de nossas instituições públicas.
 
Outra perspectiva, levantada pelo Ilmo Senador da República, é a de que tenha sido fundada a  mestiçagem brasileira como um gradual balanceamento das distinções, ou melhor dizendo, abismos entre a elite branca intelectualizada detentora dos meios de produção (restrita a números pífios) e os pretos escravos. Tal é de uma saliente ignorância.

As condições materiais de desenvolvimento social só foram dadas num momento de exclusão que passava por núcleos distintos: a família mestiça somente se tornará parte efetiva de nossas instituições sociais com a edição de leis de libertação dos escravos, e ainda assim de modo bastante tímido. Família, resguardando seus direitos e interesses, no sentido mais tradicional e conservador que possa ter (com pai, mãe, crianças, missa e educação) é branca e rica em toda a história colonial. É desse cuidado que a história social deve se cercar: os dados documentais em geral são escritos por aqueles que detem uma posição social bem definida, sólida, e revestida de meios que permitam o registro: instrução, ou condições de financiar aquelçes que procedam ao registro. Não preenchem o conteúdo de arquivos da história colonial brasileira famílias de negros, e mal são descritas as condições de homens brancos ricos que tenham se casado com negras. Em geral, as proles são geradas junto à senzala, criadas no meio doméstico os filhos bastardos são quando, muito, e de modo muito tangencial, inseridos em partilhas/inventários.  

O que pretendo dizer é que as mães solteiras, as proles bastardas, o mestiço, são todos cernes da construção da população nacional; potanto, há zonas muito insólitas que compreendem círculos de omissão e abandono da integração social e preservação de direitos. É extremamente ingênuo acreditar que a reprodução, o crescimento populacional de seres humanos tenha de ocorrer no âmbito da família, ainda que certos valores da época, tomados por "dominantes" (de fato, são valores contidos nos documentos, representam um conteúdo moral e cultural de camadas sociais dirigentes) reafirmem tal posição.

Conclusão inarredável, constatado o dado da mestiçagem brasileira, é a de que tal não deve ser tida como um processo homogêneo, gradual, bem formado, calcado em uniões não violentas, que desprezasssem a violência no âmbito doméstico, a exploração sexual, o estupro, e outras tantas formas de dominação e subjugação ainda presentes em nossos tempos.

E torna-se objetivo o problema de que mestiços também estão alijados do processo de integração social e racial.  A mestiçagem não é, nem pode ser tomada como fundamento do apaziguamento das desigualdades, como pretendeu Freyre. Não é a mestiçagem, em suas gradações, responsável por qualquer diminuição do abismo que distanciam o preto reduzido à condição de escravo do branco proprietário de terras. As desigualdades são objetivas, os encontros, desencontros e formação social são multifacetados. E as desigualdades, inicialmente materiais e raciais, permanecem materiais diante do espetáculo das raças.  

Entomologia

Sua face era rija. Seus óculos, circularmente convexos e de armação crua. Daqueles tempos em que pentes e tartarugas se associavam nas nefandas invencionices da moda, unitilmente relegada ao perecimento da matéria no tempo. Carcomera sua pele, marcada por rugas fugidias ao redor dos olhos e da boca. Aquela boca, cinza, de lábios miúdos e sem propósito, articulava palavras com precisão quase germânica. Ressibilavam, soltas, até a sobrancelha. Nada mais. Ficavam presas naquele ser limitado por sua própria condição. E perdiam-se na austera sombra acima dos olhos. Quando muito, escapuliam, descendo ao tailleur marrom surrado e metido junto a uma saia bege. Bege! Por que alguém lança mão de um tom que o faz destoar? Evanescera. Apagara-se. Tudo naquele ser tributava mofo. Naftalina. Passado. Irrelevância. Negação. Obsolecência.

Um meio-tempo, daqueles em que se deposita a crença de exercício de uma atividade, crescimento, busca, esmero! Quá, quá, quá. Qual nada! Meio-tempo é coisa para os tolos da repartição pública, cafezinho, destravamento social. A figura dos óculos convexos carregava sua corpulência sem qualquer presença. Enganava-se, hiperbólica, na exigência de relatórios e conclusões, produções e técnicas, gestos milhões, braços, pernadas, apontamentos. Os olhos enormizados pela convexidade não poderiam devorar nada mais que sua própria parvidez. Es-drú-xu-la. Feito uma mariposa. 

Não havia percebido, pobrezinha. Não se tratava de casulo. Não melhoraria. Não sairia desse invólucro. Estava diante de uma armadilha. Uma rede. Aracnídea.   

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Rapidinha

Estou sem postar há tanto tempo que me sinto até envergonhado de fazê-lo.

Mas seja feito. Gostaria de comentar dois shows muito bons a que fui, Placebo (dia 16 de abril deste ano) e Tanghetto (ontem, 25 de abril, encerramento do Conexao Vivo).

O primeiro resgata o universo meio esvaído da adolescência, dos bons momentos de descoberta de socialidades, edificacao de identidades, sei lá, rock 'n' roll mesmo, ritmado pelo compasso da civilizacao industrial dos excessos.

Brian Molko escalda sua voz e aparência andróginas na atmosfera plástica das vendas, do produto, do sujeito esmagado pelas dissensoes destes tempos. "Uma bola de confusao", mesma que sinto ser, auto-designacao do próprio Brian, em entrevista. Valeu a pena, fora a performance excelente da banda e de sua nova integrante, os efeitos visuais do fundo: portos, cidades, bonequinhas masoquistas dignas de Tim Burton. Industrializou um rock brit-pop indie que dispensa quaisquer rótulos.

E, ontem, na Praca da Liberdade, os contrastes de palmeiras e amenidades de fim de tarde de outono, e toda  a postura do tango, regada pelas velocidades da música eletrônica. O silêncio sempre foi meu amigo. E lá, continuou sendo. Sempre curti.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Tucanices

Em meio a algumas declarações arrombadas pelo frissom midiático, o PSDB, assediado e aquecido pelas indagações constantes, vislumbra os planos de vôo do tucano capenga. 

O atual governador do Estado de Minas Gerais diz não compor chapa com José Serra, e que vai disputar o Senado. Num discurso macerado por uma elevação de Minas ao cenário nacional, Aécio Neves envolve o eleitorado mineiro com uma apegada elevação da "mineiridade", instrumento decisivo de apoio de importantes segmentos do eleitorado de Minas, segundo colégio do país: empresariado, classes médias urbanas, proprietários rurais, aos quais tal discurso engendra uma esperança de resgate e inserção em um projeto nacional encabeçado por Minas, e não por São Paulo (sim, tal debate ainda baliza os corredores da política brasileira). 

Conforme o neto de Tancredo:
 
"Ter passado sete anos como o governo mais bem avaliado do país é motivo de honra. Não para mim apenas, mas para todos os mineiros. Quanto ao futuro, fiz uma opção muito clara hoje. Serei candidato ao Senado da República por Minas Gerais e no Congresso quero dar continuidade ao trabalho que iniciamos aqui, defendendo lá, os interesses de Minas Gerais"
 
A tradicional aliança com os DEMOs parece mais certa. Agripino Maia, talvez?



São Francisco do Sul, terceira vila da América portuguesa (?).

Hoje folheei uma das edições da Revista História Viva, da editora Duetto, que tenho aqui em casa. Uma história interessante, que revela ter o capitão francês Binot Paulmier de Gonneville ter partido rumo às índias e, por óbvia e banal tempestade na altura do Cabo da Boa Esperança teria mudado o curso do L'Espoir (A esperança). Veio parar aqui no Brasil, à altura de Santa Catarina, tendo estabelecido contato com os índios carijós. Um deles foi levado à corte, Içá-mirim, rebatizado como Essomeriq pelos franceses. Os relatos da viagem, a qual conseguiu alguns escambos com as tribos locais e sofreu baixas com ataques de tupinambás e piratas, foi estampada na Relação de Viagem de Gonneville, requisitada por Luís XIV a um dos descendentes do índio Essomeriq, em razão de um dos direitos do monarca de cobrança de impostos a estrangeiros (obrigação que era sucedida a seus descendentes). Foi assim que o relato fora descoberto, e representa mais um pedaço da trama francesa no Brasil.

O mais interessante, mesmo, é reparar a - ainda que sutil- semelhança entre São Francisco do Sul (apenas achada em 1504, mas não fundada pelos franceses, tendo sido efetivamente ocupada apenas no século XVII por portugueses) e Honfleur, porto de onde partira o L'Espoir. Que acham?


São Francisco do Sul, SC- Brasil
                                                  Honfleur - Normandia - França

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Tempo do esquecimento

E ontem caminhava o João na região central de sua cidade, atrapalhado por algumas luzes foscas de uma praça que choramingou por ideais tão nobres, mas profundamente adormecidos em uma sociedade de padrões hedonistas tão planejados e normativos, tangenciando existências em torno de supostos projetos de felicidade.

Lá ia o João, a pensar em seu pequenos planos de felicidade, depois de conversas abestalhadas, caipirinhas, sorrisos e percepções. Pensava em existência, segunda chance, reencarnação, o que houvesse.

Até o sinal. Não são significados, estamos falando de significações. Conferir sentido aos inúmeros dados, sem deles esperá-los antecipados conceitos. O sinal em que se cruzam a avenida Brasil e a Cristóvão Colombo:  início de empresa num vasto mundo, e um de seus grandes feitos, outro vasto mundo, de sertões.

Foi quando vi três pessoas saindo de um carro, meio confuso ainda por meus pensamentos. E por incrível que pareça, as três personagens urbanas que pareciam ter saído do automóvel nada tinham em comum, era como se tivessem sido despejadas por seu motorista. Ao que me surge uma figura meio desbaratinada, cerceada por sua solidão e seus movimentos esganiçados, vacilantes, tortos.

Usava um véu a cobrir-lhe os cabelos, raquítica, rugas lhe marcavam todo o rosto. Seus dentes inferiores, cobertos por amálgamas inúmeros, empretecidos pelo tempo, pela carência, pelas cáries, apagavam os sinais de sua aparência, vez que reluziam ao mais fraco sinal de luz. Mas seus olhos, esses, não diziam outras palavras que não "passado" e "sofrimento", misturados entre si no presente que lhe parecia ser interminável.  Me indagou, num voz mole, trêmula, carregada de sotaque sertanejo:

-Ô moço, acabei de chegar de Teófilo Otoni agora. Sofro de asma, sabe como? Vou para a casa de minha sobrinha em Santa Luzia, você poderia me dar uma ajuda, preciso comprar um medicamento e em vou ter que fazer uma cirurgia na bexiga.

Mostrou-me seus pontos e usar uma fralda incapaz de preencher com algum volume o vazio de suas saias. Suas palavras, completamente banalizadas por segmentos sociais abastados, noutras bocas poderiam permanecer banais, mas não naquela cheia de dentes careados. Abandonada, ignorada, desprezada, invisível.

Disse-lhe não ter qualquer tostão furado no bolso. Mas sua timidez foi tomada por uma necessidade premente de medicação. Perguntou se não poderia acompanhá-la até uma farmácia. Perguntei: mas aqui perto? Não sei de nenhuma aberta. Me disse ter na Afonso Pena. Lembrei da Araujo e sugeri que fôssemos andando até lá. Suas pernas frágeis, sua lentidão, permitiram tentar alguma conversa. Perguntei sobre a cirurgia, quanto tempo ficaria em Santa Luzia, sugeri ambulatórios paroquiais, em palavras muito tímidas e pouco fluidas. Ela me perguntou se eu morava por perto, em sinal de evidente cansaço, e se eu não tinha carro. Respondi que não. Disse-me ah, mas Jesus há de querer que o você um dia vai ter. 

E fiquei pensando...Um simples problema de distribuição de recursos, uma evidência da deterioração humana causada pela inoperante alocação e equalização dos mesmos recursos. Enquanto carros são fabricados, na artificial necessidade (gastando inúmeros fatores para sua produção) da classe média alta, outras almas são desfabricadas, perversamente digeridas por carências e necessidades fundamentais, e não por sofrimentos supérfluos. Mas o que almeja João? Que se deixe de oferecer os prazeres mundanos aos homens para se ofertar aos outros subumanos suas necessidades fundamentais? Não faz sentido, não é? As pessoas querem se embriagar, comprar suas belas gravatas e ternos, freqüentar as festas badaladas, ter o melhor carro, sua vida é apenas a sua, e importa-lhe pouco o que sofrem os outros. E a última solução, o Estado, sabe-se bem tratar de um leviatã dos olhos furados. À Dona Maria, resta o esquecimento, sua asma, seus dentes podres, sua inanição, seu fedor. 

Andamos até a praça da Savassi, deixei-a esperando, comprei dois Aerolim spray, remédio de que necessitava, umas bolachas e um macarrão. Confessou sua fome, e que queria comer um prato de arroz com feijão. Não tinha nada parecido por perto, tive de ir ao Mc Donald's e lhe comprar um sanduíche. Dei-lhe um abraço, meio tímido e enfraquecido por aqueles braços magros que se confundíam ao segurar a sacola com as coisas, e o sanduíche. Desejou-me bençãos. Desejei-lhe boa viagem, e felicidades, apesar de saber que tal palavra possuía-lhe significação muito diferente da que costumo conferir a ela.   


   

sábado, 30 de janeiro de 2010

Reunião

Fazia calor. Meu pescoço, minha nuca, até minhas pestanas suavam, mesmo sem ter ideia do que fosse uma pestana. Em duas horas de conversa, claudicava meus dedos em batidas inaudíveis, no pano verde de veludo, meio desbotado nas beiradas, do sofá. Enquanto isso, Elias reclamava sobre as palhaçadas do sindicato, e dos dirigentes que lá estavam a afirmar sua predisposição política, sua vocação enérgica, bradando discursos anacrônicos e na maioria das vezes fadados ao insucesso, por nunca terem alcançado as verdadeiras causas sindicais. Meus dedos no sofá, repetindo movimentos abafados pelos murros que Elias dava na mesa central da sala, pareciam uma sonatinha nervosa, como de teclas repetidas, se pudesse ser ouvida. Era a mesma impressão que tinha daquilo tudo: ninguém os ouve, enquanto batem na mesma tecla. 

Maíra, enquanto isso, arregaçava as mangas de sua blusa de tricô que, não fosse aquela peça preta por debaixo, deixaria mentes curiosas trabalharem ainda mais na trama de tantos buracos. Era magricela, mas tinha um par de seios rijos, apontados para os lados em sua postura mais ou menos ortodoxa. Suas sobrancelhas grossas entonavam uma sinfonia clara de satisfação com aquilo tudo, mas seu olhar, lânguido e perdido acima de algumas rugas, minimizava qualquer esperança de que fosse intervir no meio da conversa. Tinha uma expressão que remetia a lembranças vagas de almoços de domingo, em que preferia se meter em vestidos curtos e sair por aí, abandonando aquela patifaria constante de conversinhas de família, probleminhas cotidianos, cebolinhas e receitinhas. Aquilo não gerava desconforto, mas ódio tamanho que fazia as tias afastarem suas filhas de conversas com Maíra, e olhares cobiçosos de cunhados e primos. Desde que seu pai morrera, e sua mãe tinha se abestalhado depois de um derrame, preferiu encarar sua existência nesses termos. E não esperava grandes amores, apenas descobertas.

Foi quando achou Laércio. E tramelhou-se na confusa trama de bancários solapados por convulsões constantes, e atitudes subservientes. Sua taça de martini dizia mais, espirituoso a balancear, rodopiando suas versões de historicidade, aquilo que lhe punha tão humana, e tão distante.

Acendi um cigarro, e apaguei as versões presentes sobre estalos, fundos de pensão, contribuições sindicais, baboseira. Permanecemos eu e ela, resgatando nossos corpos,  fumaças bailantes e trilhas comuns, numa espécie de pingue-pongue de olhares conscientes. 

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Decerto, um decreto e um cargo nada discreto


Por mais enfadonho que pareça, não poderia deixar de registrar.

Um telefonema ao Gabinete da Presidência da República. Não consegui encontrar um Decreto novo, assinado ontem a quatro mãos, com o Ministro da Justiça. Decreto que instituiu bolsas de capacitação e treinamento de pessoal envolvido com Segurança Pública (policiais militares, guardas municipais, bombeiros) que atuarão nas cidades sede da Copa do mundo no Brasil. Uma inciativa e tanto, especialmente visando instruir os agentes de segurança pública em assuntos como direitos humanos, respeito a diversidade cultural, religiosa, sexual, étnica (sim, ainda no Brasil há uma necessidade expressiva de expurgar certas heranças coloniais abraçadas por gerações, e provincianismos tacanhos que não condizem com esse mundo dos intercâmbios constantes).

Ao que me veio não uma, mas duas ou três transferências de ligações, jurídico, legislação, até que me promoveram o encontro com uma voz arrastada, de sotaque carregado (Alagoas, talvez). Ia olhar se o Decreto havia sido publicado no D.O.U. Não. Teria de esperar.

Saí do momento com as indagações sobre o que deveria ser Presidente da República. Tá, sabemos todos do excesso de argumentações infantis que cerceiam a figura: todas as vicissitudes da máquina estatal, dos diferentes níveis de poder são canalizados na artificial instância do presidencialismo: o voto mais disputado por esbofeteamentos e debates quentes. Me fez lembrar até de uma entrevista de recenseamento, há uns quatro anos, com uma senhora de Raposos: "moço, o rio enche sempre e inunda minha casa, você devia falar com o Lula isso".

O chefe da Administração Pública federal, conhecer o que se passa em Ministérios, Secretarias, o que os outros poderes têm feito, e o comportamento de suas instituições no curso do jogo democrático. Além de política internacional. São os exageros da centralização administrativa. Necessária? Sempre me pareceu mais atrativo contrabalançar poderes: algo com leve cheiro de mandatos consulares em Roma antiga: um cônsul para assuntos exteriores, um para política e arranjo institucional, um para administração. Mas esfriaria a atratividade do cargo, e seus desdobramentos eleitorais.

Fato é: eu não dormiria muito bem com responsabilidades semelhantes.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O gato esperneia à primeira ameaça de banho.


A admoestação que apazigua as tensões, que mistura encantos e ilusões de um debate avexado e deslineado, reconstituído sobre os pilares de permanência histórica sufocante, e muito delicada.

Afinal de contas, que modernização se pretende propor a uma sociedade marcada por rijas paredes do labirinto das civilizações?

O gato esperneia à primeira ameaça de banho.

São quase 200 milhões de almas e mais 510 anos de forjamentos e identidades artificiais, parcelas monolíticas, ou megalíticas, a esmagar os chios e choros que ecoam nos sertões, nas grandes e pequenas cidades.

Sem dar conta, em sutis comportamentos(ou algumas vezes medonhamente escancarados) no quotidiano da "nação inventada" com pretensões de futurismo e arrojo, são levantadas facetas da cultura colonial, da Casa Grande e da Senzala: um destrato do garçom no café, uma gargalhada da cena de tortura de um filme, uma abominável exaltação de nomes e titulações, uma símia idolatria acadêmica de ícones estrangeiros, e uma repulsa incontida a palavras como "social", "reforma agrária", "bolsa família", "assistência", "inclusão", "cotas" e "emancipação".

A ferida, recoberta por uma casca de anos, latente, à espera de oportunidade para expelir sangue e pus, ao primeiro toque verdadeiramente incidente. Ou esperar sua morosa cicatrização, constantemente ameaçada por infecções quotidianas.