"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Acréscimo



Crescia, sem medo. Inerme, a correr naquela vastidão, com seus pezinhos afoitos e serelepes. Produzia buracos resvalados, pequenas tocas onde faria caber cada sentimentozinho seu. Não sem puxões de orelha de seu tutor: "-Abigail, você quer pegar bicho de pé? Amarelão?" Recontava cada episódio da infortúnia preguiçosa de Jeca Tatu, com ar de repreensão, mas ao mesmo tempo com seus olhos molengos, empapados sob aquela bolsa gorda e pintinhas ao redor. 

Abigail se sentia assim, feito Jeca. Sempre que comia aquele prato de arroz e feijão e se deparava com a enorme vastidão de luz que acachapava a cabeça dos peões. Era muito sol, e quente. Amolengava-se cantando samba lelê. Pena lhe era que esse mesmo sol não esquentava as bóias-frias. Ao menos seu prato permanecia quente, graças ao formidável fogão de lenha que Seu Valfrido mandara construir no anexo da usina. Não que isso lhe tornasse um homem melhor, ou de coração mais macio. Antes pelo contrário. Trazer Padre Tadeu fora apenas uma expiação de culpa, dessas que afligem corações perversos. Queria, antes de controlar peões com sermões do padre sobre a bondade do cultivo e do senhor, encontrar ali no seu complexo universo um confessor, alguém para quem pudesse dizer todas as maldades que inventara. 

Claro que Abigail já havia feito a pergunta a Tadeu. Mesmo tendo crescido sem ter visto de perto o que poderia ser uma vida doméstica, familiar, quotidiana. Via meninos e meninas que chegavam junto dos volantes, a chamar de "mainha" e "paim" algumas almas obinubiladas pelo facão e fogo. Foi quando conheceu  Junim. 

Surpresa ou não, foi a primeira pessoa por quem guardou um afeto. Mal havia completado seus dez anos, mal sabia que emblemas revestiam os problemas da vida extra-canavial. Mal sabia que seu apego era o início da broca que atua no interior de si, perfura, deixa rasgos que nunca se fecham. Não que fosse paixão, pois nada havia ali além das meninices. Mas havia algo muito diferente do que tinha por Padre Tadeu, ou pelo que poderia perceber de sua experiência com Pitoco, seu primeiro cãozinho de estimação, ou por Dona Maria, cozinheira que fazia o feijão tão jeca-tatuzante. Era um apego de inércia, sabia que aquilo não acabaria, se acabasse seria o fim. Foi aí que esboçavam cavaleiros e armaduras, brincavam de pique-esconde em labirintos nem tão criativos assim, apedrejavam calangos, brincavam de atrapalhado mãe da rua entre si mesmos. Junim lhe contara sobre sua vida na zona rural de Ibaiúna, sobre seu pai e sua mãe. Foi o primeiro contato que Abigal teria com essa realidade.

  

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