"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Escravizar, conquistar, aniquilar: bem-vinda, brava gente!

Colando a postagem aqui que nunca sei o que pode acontecer com essas postagens por lá...

"...peço licença para uma breve digressão, nossa milícia senhor é diferente da regular que se observa em todo o mundo. Primeiramente nossas tropas com que imos [sic] à conquista do gentio brabo desse vastíssimo sertão, não é de gente matriculada nos livros de V.M. nem obrigada por soldo, nem por pão de munição; são umas agregações que fazemos alguns de nós, entrando cada um com os servos de armas que tem e juntos imos ao sertão deste continente não a cativar (como alguns hipocondríacos pretendem fazer crer a V.M.) senão adquirir o Tapuia gentio brabo e comedor de carne humana para o reduzir ao conhecimento da urbana humanidade, e humana sociedade à associação racional trato, para por esse meio chegarem a ter aquela luz de Deus e dos mistérios da fé católica que lhes basta para sua salvação (porque em vão trabalha, quem os quer fazer anjos, antes de os fazer homens) e desses assim adquiridos, e reduzidos, engrossamos nossas tropas, e com eles guerreamos a obstinados e renitentes a se reduzirem: e se ao depois nos servimos deles para as nossas lavouras, nenhuma injustiça lhes fazemos, pois tanto é para os sustentarmos a eles e a seus filhos como a nós e aos nossos: e isto bem longe de os cativar, antes se lhes faz um irremunerável serviço em os ensinar a saberem lavrar, plantar, colher e trabalhar para seu sustento, cousa que antes que os brancos lho ensinam, eles não sabem fazer: isto entendido, senhor?"

(Carta de Domingos Jorge Velho, dirigida ao Rei de Portugal, D. Pedro II de Bragança, na ocasião da destruição da resistência do quilombo dos Palmares. In : ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas. Ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 244.)

É curiosíssima a pretensão do homem de armas, a serviço da Coroa, no trato das gentes do sertão. Conforme se observa no trecho acima, as formas de dominação são atestadas pela obrigação ao trabalho compulsório nas lavouras e roças. Escravidão, sem tirar nem por. Por mais que fosse possível encontrar desargumentos ou injustificações da escravização indígena, com base no imaginário vigente à época, de uma vocação natural do negro africano ao trabalho e a consequente desvalorização (ou mesmo proibição ética e religiosa) de escravização dos gentios da terra, almas destinadas à salvação divina pela catequização, sua existência não pode ser negada.
Existira e precisava ser justificada. Se na América Espanhola o índio não fora feito escravo, mas submetido aos sistemas de trabalho compulsório em minas e plantations sob a vigilância de senhores encomenderos e capatazes, na América Portuguesa o indígena não terá a mesma sorte de uma sistema econômico propício a formas de dominação em rodízio de trabalho, como nas minas de prata de Potosí (dada a dispersão das tribos e dos agrupamentos aqui na Terrae brasilis). E por mais que o indígena submetido a tais tarefas fosse liberado após o período em que estivesse sob o jugo dos conquistadores, certamente seu retorno às origens não ocorreria nos mesmos termos.
O processo de conquista territorial e populacional na América Portuguesa proporcionava, portanto, uma gradual "inserção" dos cativos (sim, pois estão a ser dominados em cativeiro, em regimes de trabalho compulsório) à lógica do homem conquistador. Se a Igreja não se estendera em todo o território em missões de catequização, seu insucesso na empresa de completa conversão dos indígenas se observasse, o papel de inserção desse cativo ao "processo civilizador" (termo de péssimo gosto que menospreza o fato de civilização ser uma experiência de qualquer cultura humana) só seria possível pela lógica moderna da organização dos mundos do trabalho. O homem que trabalha, que se devota ao esforço diário de sua justificação, de sua fundamentação na ordem do mundo, marcado pela graça e pelo vínculo amoroso (conforme explicitamos no texto anterior), é o homem moderno. Fé passa a caminhar, de mãos dadas, com o trabalho no mundo moderno. Só a fé salva. Só o trabalho dignifica. Eis a lógica moderna, de lançamento dos alicerces mais sólidos (e ao mesmo tempo, mais assustadores) do capitalismo.

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