Engraçado como as decisões nos entorpecem, tragam, revolvem as partículas desse "eu" tão perdido, o sujeito desconhecido, pisoteado, retorcido, esfumaçado pelo convívio. Não, não sou fruto do meio. Mas sou um enxerto nele.
Quisera acreditar em escolhas puramente racionais, meticulosas, calculadas. Elas só são tomadas porque o têm de ser. Inevitável é escolher.
Remeto ao interessante trabalho de Natalie Zemon Davis, com o qual estou tendo contato nesses últimos dias, Culturas do povo. Os Griffarins da França quinhentista, homens operadores de máquinas de prensa gráfica, a revolucionária- ou nem tanto - engenhoca de Johannes Gutenberg, poderiam ser apenas frutos de seu meio: liam, ainda que o básico, para operar caracteres gráficos. Homens abertos à inovação técnica, abertos às investidas sedutoras do ascendente protestantismo. A máquina que operavam, operava mudanças em suas visões de mundo: por um lado, alguns se vendiam ao preço de banana, os chamados Forfants, para executar semelhante serviço. A desigualdade é certamente fruto da necessidade econômica, mas as duas estão a se interpor a todo instante. Não necessitassem de qualquer vintém, não estariam os Forfants a vender sua mão-de-obra a preço tão baixo. Não necessitassem as instituições de expedir papéis e comunicar-se em impressos tão velozes, não precisariam de Forfants. A lógica capitalista depende dessa mola da técnica: inventar a necessidade é inventar a desigualdade. Quem puder pagar pela necessidade criada está investindo na possibilidade futura de novas necessidades serem inventadas. E quem não puder pagar, que arrume uma maneira para manter sua própria existência. Não se vende mão-de-obra, se atropelam potencialidades não desenvolvidas. A lógica é simples. Qualquer "outra" necessidade, que não a mais primordial do homem, é fruto do desenvolvimento tecnológico. Realizá-la depende de novos investimentos, ou de atropelar a própria potencialidade, operando a máquina, a preço módico.
É o início da desigualdade na civilização industrial. Escolher entre as Companhias criadas com o fim da sociabilidade e cooperação enre seus membros, ou a possibilidade das novas sociabilidades de certo tentador progressimo protestante? Não há escolha. O projeto da Igreja Católica venceu em Lyon, junto aos agentes da comunicação impressa, aproveitando-se da polarização do conflito entre Griffarins e Forfants. A pergunta é a mesma: escolheram? Racionalmente?
As demonstrações da autora sugerem bastante que não.
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