"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Enrubrecimento

Teresa nao podia esperar. Eram anos convivendo com sua asma renitente, sua magreza ínfima, aquelas olheiras profundas. Sua origem nao era conhecida: tia Doca, mais que matrona, era a mae perversa de Teresa. Nao tinha mais ninguém que nao aquela velha obesa, a resmungar sobre o preco das carnes, entre um cigarro e outro que acendia e sufocava a pobre moca.

Morava ali, naquele barracao sem divisórias, misto confuso de panelas, caes, fogao e cama. Rangiam os vizinhos vez ou outra seus recorrecos e assobios, em rodas de samba das quais Teresa nunca quis saber de participar. Era uma alegria da qual nao podia compartilhar. Até aquele dia. Nao podia esperar. 

Meteu na bolsa os poucos dinheiros que ganhava como servicos gerais, e foi à Quinze de Marco naquela manha de sábado. Calor. Formigueiro humano. Pisadas. Pocas d'água. Pastel. Fumaca. Choros de criancas. Berros. Imundície. 

Nao importava. Em terra onde nao há carne, urubu é frango. Comprou um vestido, resgatou qualquer resto de autoconfianca, pos um batom do mais vulgar e um ruge na cara, e se estendeu até o anoitecer, naquele vaivém frenético. Hora em que simplesmente foi ao cinema. 

Era um filme antigo, com Bette Davis. Se reconhecera naqueles olhos, idênticos aos seus quando marejavam. 

Nunca se pode esperar. 

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