Capítulo 1. Descobrimento da América: a comemoração como o narciso da cultura latino-americana
Muitos países das Américas ainda mantêm sua ancestralidade cultural e étnica. A violência dos conquistadores é ponto comum de acordo no processo colonizador. É parte do imaginário comum a ideia de que as relações familiares eram mais estreitas junto às comunidades primitivas modernas, o que geraria um certo senso de recusa inconsciente dessa mesma sociedade tida por arcaica e atrasada. Assim é que também são preservados certos gostos por tradições coloniais, das quais não se quer afastar, mesmo após as independências. Apenas parecem ser modernas, as sociedades americanas de hoje. Pensar uma comemeoração dos descobrimentos é pensar em acontecimentos selecionados e conservados através de uma narrativa histórica, que ganha sentido à medida que é inserido numa grande cadeia explicativa da ancestralidade. Mas se um acontecimento é eleito, nele convergem linhas de desarticulação e rearticulação do relato, conferindo-lhe significados libertadores.
Os descobrimentos correspondem a duas ordens de significações: uma, a do imaginário europeu do século XV, em que a América deveria se transformar num Novo Mundo, em que os conquistadores deveriam implantar todos os padrões básicos da vida europeia. A outra, tendo por base os fragmentos das culturas pré-colombianas, favorecendo a concepção utópica de sociedades sem classe. Essas duas ordens de significações pretendem satisfazer de forma narcisística o nosso ideal de cultura. A comemoração do descobrimento objetiva, em última instância, desvencilhar-nos de modelos arcaicos cristalizados.
A vertente ibérica que colonizou a América transportou o cenário medieval para o outro lado do Atlântico. As naus traziam, além de suprimentos, objetos que recompunham as estruturas de poder na Europa. A repetição e valorização do passado, para o colonizador, conferiu-lhe certa visão profética do processo colonizador. Valoriza a majestade de vida, da edificação pela pedra e suas imensas catedrais. Heróis são constituídos, tipo Camões. Já a vertente anglo-saxã, constituiu uma cultura que colocava dúvidas aos referenciais de origem. A história da Inglaterra era a de um mundo em crise, distanciando-se das representações heróicas do modelo ibérico. Optou pelas navegações e pirataria, e uma percepção bastante econômica de suas relações com o mundo recém-descoberto. O colono inglês constrói todo seu universo material sem apoio do Estado, o que o obriga a tomar consciência de sua situação real. Já o espanhol incorpora a presença do Estado através da possibilidade de recompor seu imaginário senhorial. Luxo, majestade, fortuna e glória lhes são máximes. Já as fantasias dos ingleses valorizam os elementos da cultura que possam ser apreendidos sob o signo de função. Não constrói para a eternidade, deixa margem para a mudança. É possível romper com o passado colonial. Daí se explica parcialmente a proliferação de fantasias democráticas e mudar estruturas político-econômicas atreladas ao passado colonial.
A América foi inventada antes de ser descoberta. O descobridor representou seu sonho. O novo surge como reflexo do velho. Era indispensável a implantação de uma cultura material europeia manipulada pelo conquistador, expressões cênicas dos descobrimentos e da colonização. Paralelos entre o massacre do Templo de Tenochtitlán e o retorno de Ulisses, ou entre as pinturas renascentistas e a história norte-americana. Os símbolos da servidão deveriam ser repetidos. Mas as populações indígenas deixavam transparecer outras formas de conduta. A cidade era um lugar privilegiado para a realização de um longo ritual, no qual europeus e indígenas se tornavam artífices do Novo Mundo. A Igreja costumava fazer a tradução de símbolos e corporificar as harmonias do universo. A união das raças promovia a gradual perda da identidade europeia, e um mundo dito novo se fez a partir da renúncia do velho mundo. Uma memória fragmentada organiza, assimila e miscigena, compondo a fantasia da identidade latino-americana. A dificuldade, por exemplo, de se impor se fez presente na ocupação do México: procurou-se estabelecer uniformidade de ruas e fachadas e construções, que obedecessem aos padrões europeus. Além do trabalho de catequese, em que os indígenas aprenderam a imitar, mas não a recordar, como faziam os europeus e seu modo de pensar. O indígena reproduz o desconhecido, nesse sentido. A ruptura com as metrópoles não alterou as relações sociais, mantendo-se intactos os símbolos de poder.
A oposição entre vencedores e vencidos é um tema de abordagem complexa pois a oposição se constitui quando analisada pelo código europeu. A cultura europeia, transformada em universal, acaba sendo utilizada como padrão único para ordenar e decifrar todas as culturas. Quando se supõe a possibilidade de descrever todas as civilizações, é trabalhada a hipótese de uma memória unívoca, sequencial, marcada pela ideia de progresso. Saimos do confronto para a assimilação. A cronologia que se sustenta pela cadeia de eventos escolhidos a posteriori, reverencia a história iniciada pelos descobrimentos. O conflito valorizado, se torna a raiz de nossa identidade. O que conhecemos, o que restou, são fragmentos esparsos. Resgata-se o movimento de oposição entre dominadores e dominados, e muitas vezes se resgata o passado pré-colombiano com a sensação do esquecimento e da perda. Não é possível se falar em assimilação, uma vez que ambas as culturas (nativa e europeia) não possuíam o mesmo tipo de padrão cognitivo. Vencedores e vencidos é uma terminologia que pressupõe possibilidade de resistência cultural. Um desejo profundo de se recuperar um universo perdido, reabilitá-lo como raiz de identidade indígena nacional. Sonhos de ordem, precisão, perfeição são sonhos onipotentes, sonhos modernos, do homem moderno.
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