E ontem caminhava o João na região central de sua cidade, atrapalhado por algumas luzes foscas de uma praça que choramingou por ideais tão nobres, mas profundamente adormecidos em uma sociedade de padrões hedonistas tão planejados e normativos, tangenciando existências em torno de supostos projetos de felicidade.
Lá ia o João, a pensar em seu pequenos planos de felicidade, depois de conversas abestalhadas, caipirinhas, sorrisos e percepções. Pensava em existência, segunda chance, reencarnação, o que houvesse.
Até o sinal. Não são significados, estamos falando de significações. Conferir sentido aos inúmeros dados, sem deles esperá-los antecipados conceitos. O sinal em que se cruzam a avenida Brasil e a Cristóvão Colombo: início de empresa num vasto mundo, e um de seus grandes feitos, outro vasto mundo, de sertões.
Foi quando vi três pessoas saindo de um carro, meio confuso ainda por meus pensamentos. E por incrível que pareça, as três personagens urbanas que pareciam ter saído do automóvel nada tinham em comum, era como se tivessem sido despejadas por seu motorista. Ao que me surge uma figura meio desbaratinada, cerceada por sua solidão e seus movimentos esganiçados, vacilantes, tortos.
Usava um véu a cobrir-lhe os cabelos, raquítica, rugas lhe marcavam todo o rosto. Seus dentes inferiores, cobertos por amálgamas inúmeros, empretecidos pelo tempo, pela carência, pelas cáries, apagavam os sinais de sua aparência, vez que reluziam ao mais fraco sinal de luz. Mas seus olhos, esses, não diziam outras palavras que não "passado" e "sofrimento", misturados entre si no presente que lhe parecia ser interminável. Me indagou, num voz mole, trêmula, carregada de sotaque sertanejo:
-Ô moço, acabei de chegar de Teófilo Otoni agora. Sofro de asma, sabe como? Vou para a casa de minha sobrinha em Santa Luzia, você poderia me dar uma ajuda, preciso comprar um medicamento e em vou ter que fazer uma cirurgia na bexiga.
Mostrou-me seus pontos e usar uma fralda incapaz de preencher com algum volume o vazio de suas saias. Suas palavras, completamente banalizadas por segmentos sociais abastados, noutras bocas poderiam permanecer banais, mas não naquela cheia de dentes careados. Abandonada, ignorada, desprezada, invisível.
Disse-lhe não ter qualquer tostão furado no bolso. Mas sua timidez foi tomada por uma necessidade premente de medicação. Perguntou se não poderia acompanhá-la até uma farmácia. Perguntei: mas aqui perto? Não sei de nenhuma aberta. Me disse ter na Afonso Pena. Lembrei da Araujo e sugeri que fôssemos andando até lá. Suas pernas frágeis, sua lentidão, permitiram tentar alguma conversa. Perguntei sobre a cirurgia, quanto tempo ficaria em Santa Luzia, sugeri ambulatórios paroquiais, em palavras muito tímidas e pouco fluidas. Ela me perguntou se eu morava por perto, em sinal de evidente cansaço, e se eu não tinha carro. Respondi que não. Disse-me ah, mas Jesus há de querer que o você um dia vai ter.
E fiquei pensando...Um simples problema de distribuição de recursos, uma evidência da deterioração humana causada pela inoperante alocação e equalização dos mesmos recursos. Enquanto carros são fabricados, na artificial necessidade (gastando inúmeros fatores para sua produção) da classe média alta, outras almas são desfabricadas, perversamente digeridas por carências e necessidades fundamentais, e não por sofrimentos supérfluos. Mas o que almeja João? Que se deixe de oferecer os prazeres mundanos aos homens para se ofertar aos outros subumanos suas necessidades fundamentais? Não faz sentido, não é? As pessoas querem se embriagar, comprar suas belas gravatas e ternos, freqüentar as festas badaladas, ter o melhor carro, sua vida é apenas a sua, e importa-lhe pouco o que sofrem os outros. E a última solução, o Estado, sabe-se bem tratar de um leviatã dos olhos furados. À Dona Maria, resta o esquecimento, sua asma, seus dentes podres, sua inanição, seu fedor.
Andamos até a praça da Savassi, deixei-a esperando, comprei dois Aerolim spray, remédio de que necessitava, umas bolachas e um macarrão. Confessou sua fome, e que queria comer um prato de arroz com feijão. Não tinha nada parecido por perto, tive de ir ao Mc Donald's e lhe comprar um sanduíche. Dei-lhe um abraço, meio tímido e enfraquecido por aqueles braços magros que se confundíam ao segurar a sacola com as coisas, e o sanduíche. Desejou-me bençãos. Desejei-lhe boa viagem, e felicidades, apesar de saber que tal palavra possuía-lhe significação muito diferente da que costumo conferir a ela.
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