"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

sábado, 30 de janeiro de 2010

Reunião

Fazia calor. Meu pescoço, minha nuca, até minhas pestanas suavam, mesmo sem ter ideia do que fosse uma pestana. Em duas horas de conversa, claudicava meus dedos em batidas inaudíveis, no pano verde de veludo, meio desbotado nas beiradas, do sofá. Enquanto isso, Elias reclamava sobre as palhaçadas do sindicato, e dos dirigentes que lá estavam a afirmar sua predisposição política, sua vocação enérgica, bradando discursos anacrônicos e na maioria das vezes fadados ao insucesso, por nunca terem alcançado as verdadeiras causas sindicais. Meus dedos no sofá, repetindo movimentos abafados pelos murros que Elias dava na mesa central da sala, pareciam uma sonatinha nervosa, como de teclas repetidas, se pudesse ser ouvida. Era a mesma impressão que tinha daquilo tudo: ninguém os ouve, enquanto batem na mesma tecla. 

Maíra, enquanto isso, arregaçava as mangas de sua blusa de tricô que, não fosse aquela peça preta por debaixo, deixaria mentes curiosas trabalharem ainda mais na trama de tantos buracos. Era magricela, mas tinha um par de seios rijos, apontados para os lados em sua postura mais ou menos ortodoxa. Suas sobrancelhas grossas entonavam uma sinfonia clara de satisfação com aquilo tudo, mas seu olhar, lânguido e perdido acima de algumas rugas, minimizava qualquer esperança de que fosse intervir no meio da conversa. Tinha uma expressão que remetia a lembranças vagas de almoços de domingo, em que preferia se meter em vestidos curtos e sair por aí, abandonando aquela patifaria constante de conversinhas de família, probleminhas cotidianos, cebolinhas e receitinhas. Aquilo não gerava desconforto, mas ódio tamanho que fazia as tias afastarem suas filhas de conversas com Maíra, e olhares cobiçosos de cunhados e primos. Desde que seu pai morrera, e sua mãe tinha se abestalhado depois de um derrame, preferiu encarar sua existência nesses termos. E não esperava grandes amores, apenas descobertas.

Foi quando achou Laércio. E tramelhou-se na confusa trama de bancários solapados por convulsões constantes, e atitudes subservientes. Sua taça de martini dizia mais, espirituoso a balancear, rodopiando suas versões de historicidade, aquilo que lhe punha tão humana, e tão distante.

Acendi um cigarro, e apaguei as versões presentes sobre estalos, fundos de pensão, contribuições sindicais, baboseira. Permanecemos eu e ela, resgatando nossos corpos,  fumaças bailantes e trilhas comuns, numa espécie de pingue-pongue de olhares conscientes. 

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Decerto, um decreto e um cargo nada discreto


Por mais enfadonho que pareça, não poderia deixar de registrar.

Um telefonema ao Gabinete da Presidência da República. Não consegui encontrar um Decreto novo, assinado ontem a quatro mãos, com o Ministro da Justiça. Decreto que instituiu bolsas de capacitação e treinamento de pessoal envolvido com Segurança Pública (policiais militares, guardas municipais, bombeiros) que atuarão nas cidades sede da Copa do mundo no Brasil. Uma inciativa e tanto, especialmente visando instruir os agentes de segurança pública em assuntos como direitos humanos, respeito a diversidade cultural, religiosa, sexual, étnica (sim, ainda no Brasil há uma necessidade expressiva de expurgar certas heranças coloniais abraçadas por gerações, e provincianismos tacanhos que não condizem com esse mundo dos intercâmbios constantes).

Ao que me veio não uma, mas duas ou três transferências de ligações, jurídico, legislação, até que me promoveram o encontro com uma voz arrastada, de sotaque carregado (Alagoas, talvez). Ia olhar se o Decreto havia sido publicado no D.O.U. Não. Teria de esperar.

Saí do momento com as indagações sobre o que deveria ser Presidente da República. Tá, sabemos todos do excesso de argumentações infantis que cerceiam a figura: todas as vicissitudes da máquina estatal, dos diferentes níveis de poder são canalizados na artificial instância do presidencialismo: o voto mais disputado por esbofeteamentos e debates quentes. Me fez lembrar até de uma entrevista de recenseamento, há uns quatro anos, com uma senhora de Raposos: "moço, o rio enche sempre e inunda minha casa, você devia falar com o Lula isso".

O chefe da Administração Pública federal, conhecer o que se passa em Ministérios, Secretarias, o que os outros poderes têm feito, e o comportamento de suas instituições no curso do jogo democrático. Além de política internacional. São os exageros da centralização administrativa. Necessária? Sempre me pareceu mais atrativo contrabalançar poderes: algo com leve cheiro de mandatos consulares em Roma antiga: um cônsul para assuntos exteriores, um para política e arranjo institucional, um para administração. Mas esfriaria a atratividade do cargo, e seus desdobramentos eleitorais.

Fato é: eu não dormiria muito bem com responsabilidades semelhantes.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O gato esperneia à primeira ameaça de banho.


A admoestação que apazigua as tensões, que mistura encantos e ilusões de um debate avexado e deslineado, reconstituído sobre os pilares de permanência histórica sufocante, e muito delicada.

Afinal de contas, que modernização se pretende propor a uma sociedade marcada por rijas paredes do labirinto das civilizações?

O gato esperneia à primeira ameaça de banho.

São quase 200 milhões de almas e mais 510 anos de forjamentos e identidades artificiais, parcelas monolíticas, ou megalíticas, a esmagar os chios e choros que ecoam nos sertões, nas grandes e pequenas cidades.

Sem dar conta, em sutis comportamentos(ou algumas vezes medonhamente escancarados) no quotidiano da "nação inventada" com pretensões de futurismo e arrojo, são levantadas facetas da cultura colonial, da Casa Grande e da Senzala: um destrato do garçom no café, uma gargalhada da cena de tortura de um filme, uma abominável exaltação de nomes e titulações, uma símia idolatria acadêmica de ícones estrangeiros, e uma repulsa incontida a palavras como "social", "reforma agrária", "bolsa família", "assistência", "inclusão", "cotas" e "emancipação".

A ferida, recoberta por uma casca de anos, latente, à espera de oportunidade para expelir sangue e pus, ao primeiro toque verdadeiramente incidente. Ou esperar sua morosa cicatrização, constantemente ameaçada por infecções quotidianas.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Experimente, leitor, ouvir isto daqui com umas belas taças de vinho tinto do lado. Nada melhor.

http://www.youtube.com/watch?v=K047-ZiFUbs

Memorial de Áries


Alimentava suas esperanças em um horizonte em ressaca. Aquelas nuvens borradas ao fundo, o frio contido em seu ventre, e noites mais ou menos dormidas, em que seus pensamentos pareciam tornar-se sonhos de interpretações forçosas. Acreditou naquele papo de que sonhos têm fundamento, e que representam carências pessoais. Negativo! Seus pensamentos, esses sim. Sonhos são incontroláveis, e escarneiam e sarcasmizam as banalidades mais turvas dessa vida cotidiana, enfadonha e molestada.


Tinha uma vida pela frente sem tê-la. Tudo que tinha eram nuvens, e por serem nuvens se desmanchavam ao primeiro sopro mais revolto que aparecesse. E lá se iam tomando formas cirróticas, sem preocupar com as comparações infantis entre suas formas iniciais e objetos quaisqueres: bola, cão, carneiros.


Carneiros! Que idiotice! Se viu um carneiro na vida, foram umas duas vezes. Uma na fazenda de Tio Abelardo e outra, quando visitou aquela feira agropecuária em São João. Depois disso, o bicho não passava de uma vaga lembrança de documentários televisivos, ou figurinhas de álbuns.


Maior idiotice era aquela trouxice de carneiros ao dormir. Insônia? Carneirinhos! Nunca conseguiu imaginar algo além de um algodão avantajado saltitando feito um pônei sobre uma cerca. E nunca conseguira dormir com essa imagem na cabeça. Seria pelo menos idiota, e menos incomodante que seus pensamentos triviais.

Hay que suavizar pero sin perder la conjetura jamás


E o Chile se descompassa da dança...


Atravessando a fase da recente experiência democrática latino-americana, o Chile elegeu seu novo presidente com as esperanças de, segundo o próprio eleito, Sebastián Piñera, "promover mudanças necessárias ao país". A pergunta que não quer calar é: foi a incapacidade da popularíssima ex-presidente Michelle Bachelet transferir seus votos a Eduardo Frei? Ou há algo tão estreito quanto o Chile a rondar os entornos do Palácio de La Moneda?


Fato é que as reformas implementadas no governo Bachelet, apesar de controversas, foram bem aceitas pela população: auxílios aos necessitados nas regiões semi-polares do país, reforma da saúde com a construção de hospitais e a inserção de uma agenda ambiental para as políticas de governo. E, claro, como não poderia deixar de ser, o bom momento em que respirou a economia chilena nos últimos quatro anos, apesar da crise econômica atual, com o aumento expressivo das exportações de cobre e o crescimento de atividades relacionadas a essa indústria.


Bem, o resultado "en Chile" só nos mostra os desafios da esquerda (moderada?) sulamericana...E os custos do jogo democrático. A abominável tendência presidencialista, que chacoalha carismas ao sabor de ondas marqueteiras, coloca os preços dos projetos de governo sob o dilema das rupturas. "O que é bom tem que continuar", essa é a melhor expressão em campanhas eleitorais. Mas a realização dos governos passa por problemas da administração que vão muito além de belos discursos. Sacrifícios sempre ocorrerão: ora de camadas sociais, ora de agentes econômicos, ora do próprio Erário. O peso de uma escolha é a exclusão, gregos jamais foram troianos. "Concertación" é lindo como um Boticelli, mas inóspito feito um Casper David.


É o desafio para as eleições brasileiras de 2010. A esquerda petista terá de assumir os riscos do presidencialismo, transferir votos de Lula a Dilma sem acreditar em projeções ilusórias de vitória antes da hora.


Enquanto no Chile, a empresa (AXXXION) de que é grande acionista Piñera teve alta espetacular no mercado de títulos, após sua eleição. Tudo na mais bela clareza entre empresariado e política.


Foi um passo estrambelhado à direita, na dança sulamericana.



domingo, 17 de janeiro de 2010

Amadurecem as instituições?

Mais uma do mensalão demoníaco.

A oposição que não sabe o que quer, e o fisiologismo abestalhante do jogo democrático.

Michel Temer, líder do PMDB e presidente da Câmara, envolvido no esquema de propinas.
É de competência do Supremo Tribunal Federal autorizar a investigação criminal de Deputados Federais.

Vejamos o desfecho da nova novela.

Aglutinação




-Pai, o que é que as pessoas pensam quando estão trabalhando?

-Como assim meu filho?

-Ah...é que outro dia o Junim me disse que o pai dele está ficando estressado, e é por causa do trabalho. Parece que o lugar onde o pai dele trabalha está querendo mandar umas pessoas embora...

-Sei...

-Eu não sabia o que era ficar estressado. Aí eu perguntei pra Tia Regina e ela me disse que quem fica estressado é quem fica cheio de preocupação, pensa demais na vida.

-Ela te disse isso?

-Disse. E disse que por pensar demais, vive mais pensando que vivendo, e por isso vive menos.

-Hum.

-Então quem está estressado no trabalho fica pensando muito na vida? Deve ser por isso que o chefe do pai do Junim está mandando gente embora: quem vive menos trabalha menos, né?

-É, meu filho, mas quem trabalha mais às vezes vive menos, e quem trabalha menos às vezes pensa demais.

-Acho que vou parar de jogar bola com o Junim. Outro dia ele quis jogar um jogo esquisito, paulistinha...Ele às vezes pensa de menos.


sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O Haiti não é aqui

Entre escombros, não são os tremores que abalam um país. O verdadeiro abalo, este veio em ondas sucessivas e frequentes, que engendraram o encravamento, na primeira porção de esperança de uma viagem de "sucesso", feita em 1492, da maior máquina reprodutora de miséria humana nas Américas, desde então.

O sangue negro compensou: anos de farras coloniais, engendramento nefasto da perversa lógica preparadora dos destinos agigantados do capital: da colônia à indústria, do tabaco ao aço, do açúcar ao tecido. E, das almas lançadas no mar, agrilhoadas à crueldade às almas que caíam de sono sobre teares em York.

A belissima "prontidão" das nações mais ricas do planeta, essa união do mundo em socorro às vítimas de estragos produzidos por amargas desigualdades confirmadas e chanceladas durante séculos pelos mesmos samaritanos.

Se Toussaint Louverture estivesse a ver o caos do sonho que criara, sonho este detestado pelas nações europeias de sua época, certamente preferiria ter voltado à condição de escravo colonial. O inferno lhe seria menos doloroso.

E, se não bastasse isso tudo, o absurdo chega ao impensável: uma revelação de ignorância e intolerância, sentimentos da mesquinharia perversa e da tacanhez e demência do "ocidente branco civilizado". Ignorar contextos, retirá-los do debate sobre os buracos do mundo, afirmá-los na condição de alheios, de alijados, essa é a atuação necessária de uma macropolítica da exclusão. "O inferno são os outros, e eles que fiquem lá. O Haiti não é aqui. " Na boca do representante diplomático:





terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Trisch, Trasch

Trisch, trasch, movimento,
padam padam, tonto feito Piaf,
Crec, croc, colunas estalam,
Hihihi hohoho monarcas gargalham

Caiu a peruca de D. Stephan Antoine Riefensbach.

Desata espartilho, deixem-na respirar
E, com ela, todo o governo.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Au revoir, Rohmer


Mais uma luz se apaga, diminuindo os faíscas do século XX que nos restam nesta nova década.

Nouvelle Vague, Goddard, Truffaut, breves inspirações de um cinema reverberante, esgoelado pela juventude ansiosa, recém saída de sua libertação sexual, moral, intelectual. Os anos da Primavera de Praga, de Woodstock não poderiam esperar do semblante sóbrio da Paris envaidecida de intelectualóides coisa diferente de um profundo desapego a narrativas lineares, a roteiros repletos de cadência precisa e de um menosprezo dos atores da velha geração.

Rompíam-se as cordas para mais uma manifestação de ousadia altiva.

Hoje, rompem-se as cordas que fragilmente ligam os círculos da arte a esferas ou níveis de intimidade com a política ou com as moribundas ideologias (será mesmo?) de nosso século. Quase nunca pela abordagem das entrelinhas, implícita, como fazia o cinema de Rohmer, por meio de personagens cujo ponto de referência era seu próprio discurso.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Quase lá

Esperava meio atônito, aquele olhar esfumaçado, opaco, em direção a qualquer ponto atrás da parede branca, corrompida pelas infiltrações de janeiro encharcado. Nunca tinha esperado algo com tanta paciência. Paciência que lhe conduzia a esse estado semi-catártico, dopado pelos ruídos inquietos e aromas sedutores da empatia metropolitana.
Olhou para o relógio. O ponteiro vermelho se movia em um movimento tenso e desacelerado, antes de atingir a marca seguinte dos segundos, se conduzia num ritmo enrijecido, até despencar até um daqueles tracinhos com uma violência fatal. Cada segundo parecia uma bomba. O tique-taque, apesar de inaudível, anunciava um holocausto.
Exames, avaliações, julgamentos, considerações, comissões, juntas, conselhos. Um bando de crenças, invenções sedutoras de sonhos e fracassos. Sua paciência estava agrilhoada às expectativas em torno de um pequeno grupo de...pessoas. Arrogadas em sua autoridade, não passavam de imbecis, feito ele mesmo. Quando receberia o veredicto? Quando sairia daquele estado de tensão, que lhe corroía as paredes intestinais, diminuía-lhe as pupilas, produzia uma vastidão de frios e calafrios naquele mesmo estômago? Olhava para os carros, lá embaixo, pequeninos, em seu fluxo abobalhado, e aquele vento que bambeava venezianas, a produzir sons um tanto medonhos. Olhou para a cartela de prozac em cima da cômoda. Olhou para o filtro de água, demovido da cozinha para a sala, no intuito de acertar as contas periódicas de uma sede sufocante que sentía.
Parou seu olhar no filtro. O enorme jarro de plástico, garrafão de água mineral, opaco. Bebia aquela água que parecia meio suja. Subitamente, meio que à espreita de sua distração catatônica, pequena bolha emergiu do fundo. E, seguindo a ela, um peixinho dourado.
Decidiu pegar as chaves, o maço de cigarros, descer as escadas, e dar uma volta no parque.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Arariboia

O nome do índio, mito do Brasil que engatinhava seus passos ao período colonial, foi mais ou menos resgatado pela obra de José de Alencar, que serviu de certos relatos históricos para produzir "o Guarani", misto de tradições indígenas e europeias. O heroi romântico tem apenas uma capa de brasilidade, seu conteúdo, seus valores morais, suas ações são claramente de um cavaleiro de canções de gesta.


Arariboia significa, em tupi, "cobra brava". Em episódios repletos de lendas, teria o chefe da tribo dos temiminós auxiliado a expulsão dos franceses, pondo fim às pretensões da França Antártica, da Baía de Guanabara. Sua ira contra os homens de Villegagnon encontrou as razões na expulsão de sua tribo da ilha do Governador pelos franceses, demovendo-o para a Capitania do Espírito Santo, onde teria auxiliado na expulsão de alguns holandeses.


Por seus feitos à Coroa, teria recebido a Capitania de Niterói anos mais tarde, após sua conversão ao catolicismo. Reza a lenda que, no momento de seu empossamento, na Cidade do Rio de Janeiro, teria cruzado as pernas como é do costume indígena, o que teria desagradado o Governador. Diante disso, Arariboia teria esbravejado: "Minhas pernas estão tão cansadas de tanto lutar pelo seu rei, por isto eu as cruzo ao sentar-me, se assim o incomodo, não mais virei aqui!"


Pois é verdade que, cruzando as pernas, estava o cacique demonstrando certa resistência a sua completa fagocitose, pelo processo colonizador. Arrancar de si seus hábitos típicos, dando lugar a construtos completamente alheios, seria a confirmação de sua submissão.


Abandonado pela costumeira didática escolar, ainda não lhe foi colocado o cocar de heroi da história brasileira que mereceria receber.


Chávez e o Bolívar


A Folha de São Paulo noticiou hoje uma medida do governo Chávez de desvalorização da moeda venezuelana. Haverá duas taxas de câmbo vigentes: uma mais valorizada e a outra menos, sendo que a primeira busca combater uma taxa de câmbio extra-oficial que a estaria triplicando.

A inflação, afirma ainda a Folha, saltou em 25% em 2009, enquanto as reservas cambiais diminuem em 36%, graças à desaceleração das exportações do petróleo, resultado da recessão mundial.

Portanto, na lógica econômica, menores reservas cambiais implicam em desvalorização monetária: suponhamos que, se antes, com um bolívar, se compravam os mesmos bens ou serviços que se compravam com um dólar em qualquer parte do mundo, agora, com um mesmo bolívar, desvalorizado (menos dólares em circulação, comprar um dólar ficou mais caro, sendo necessário mais bolívares para tanto, o que significa que para cada bolívar se compram menos dólares, ou para cada dólar se trocam mais bolívares).

Ou seja, há mais bolívares em circulação para comprar uma mesma quantidade de bens e serviços no mercado internacional, que dólares para tanto. Há mais bolívares em circulação que dólares, o que eleva o preço dos bens e serviços venezuelanos, comparativamente.


O efeito do chamado "imposto da inflação" descamba numa corrosão do poder aquisitivo de camadas menos favorecidas da população, o que é desastroso para uma economia emergente como a da Venezuela.


Veremos como essa dualidade de taxas influenciará as reservas cambiais do país. A experiência não é inovadora, tendo mesmo o Brasil adotado a dualidade cambial: a partir de janeiro de 1989, coexistiram duas taxas de câmbio: uma controlada pelo BACEN e outra de taxas flutuantes, definidas conforme as regras de mercado. Esse modelo perdurou mais ou menos até 2005, e teve impactos importantes para o avanço e resistência aos abalos mundiais, da economia brasileira. Difícil dizer, de antemão, se as medidas chavistas concluirão algo semelhante.


sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O arroz

-Evandro, onde você estava com a cabeça quando resolveu comprar essa televisão?!
-Ah, meu amor, a nossa já estava tão velhinha, e você mesma me dizia que uma TV maior ia ser muito melhor para ver os filmes. Então, tava barato, resolvi comprar.
- Você nunca me dá ouvidos, esqueceu que este mês é mês de matrícula dos meninos, tem que comprar material escolar, e fora aquela prestação do som! Tá achando que teu salário vai dar conta de tudo?!
- Eu sei, eu sei...
- Sabe nada! Quer saber? Sempre achei que você devia levar as coisas mais a sério. Incluindo nosso casamento.
Gláucia fechou a porta do quarto, esgueirou-se na cama em uma queda impactante, e se põs a esgoelar em lágrimas e soluços. Não era a vida com que sonhara. Em sua cabeça, tinha todos os motivos para sua tristeza irrompante: o marido recém empregado numa loja de sapatos, num emprego que mal dava para pagar as despesas, a bronquite da filha, que tossia e chiava em madrugas frias naquela quitinete paulistana, aquelas gargalhadas gordas de seu chefe, o sr. Moreira, sua solidão resumida à vidinha micro-familiar, aquele arroz com salsicha de que estava cansada de fazer de almoço...merda de arroz! O arroz....o arroz!!!!!
Correu à cozinha, esbaforida, e sentindo um cheiro de queimado. Nem Evandro, nem a TV, estavam mais na sala.

Sem assento



Reproduzir antagonismos, em cortes profundos entre carência e oportunidade, nunca me pareceu muito concreto. Nasci num mundo dividido, porém fraquejante e pulverizado, bombardeado pela brevidade inquieta do século.

Evacuação propalada aos quatro cantos, conceitos refeitos numa lógica plástica, mutante. Não sou capaz de traçar linhas fronteiriças, efeitos de uma geração cujas curvas que gere são famintas: ânsia por encontros improváveis, e decisões terminativas.

A sociedade em defesa, por homens cujo foco esteve nessa lógica determinante dos passos seguintes: social, plural, diverso, múltiplo. Em que pesem todos os excessos, o tempo da alteridade não é somente o meu, mas de todos. A dicotomia entre iguais e livres, essa virou sucata, e está dançando sozinha ao ritmo de lambada. Não é o espaço para tal, sabe-se que ninguém é igual num planeta de famintos, miseráveis, digeridos pelas perversões e caprichos de um jogador mimado, que vive em crises constantes.

Jogador que pode ter perdido algumas fases, cochilado em breves períodos, mas jamais largou o controle. Distribui discursos esvaziados, como bônus a suas personagens. E se diverte, com o homo faber, em sua inércia esgotante e, paradoxalmente, inesgotável.






quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Dragão de pernas abertas?


Li hoje uma notícia no Frankfurter Allgemeine sobre um evento que ocorreu na China há pouco tempo. Em breves dias, anteriormente à "virada do ano" no calendário gregoriano, sites da rede mundial, como o Youtube, o Facebook ou o Twitter estiveram liberados para acesso pelos usuários chineses.

A "grande muralha" (ou Great Firewall) é a barreira da liberdade de comunicação na terra de Lao Tsé. As barbaridades do mundo ocidental não chegam com a freqüência aniquiladora da internet ocidental.

Fico pensando: qual a razão desse controle intransigente de informação? O modelo chinês de desenvolvimento econômico (à contramão da valorização dos direitos sociais) está necessariamente associado ao autoritarismo político? Justificá-lo apenas pela herança de um "regime"reconfigurado em sua concepção original desde meados da década de setenta não é suficiente.

O modelo chinês que, em primeira linha, parece dar certo, só encontra seus fundamentos em uma população enorme (mercado de consumo com potencial de crescimento altíssimo), reservas internas de moeda balanceadas e, claro, o aparato político a seu favor. Assim, um modelo autoritário garante a estabilidade política (sem dúvidas um dos fatores de que mais se valem os investidores estrangeiros) sem os balanços e tremores próprios da democracia, e garante também a continuidade de planos econômicos à primeira vista "eficientes" : baixa carga de tributação a determinadas atividades e controle da legislação, evitando ampliação de direitos trabalhistas, por exemplo, contribuindo ao baixo custo da mão de obra chinesa.

Uma forma política afagada e gerida pelo relativo sucesso econômico não pode vacilar. Deixar que informações circulem sem controle é sinal de abertura."Ocidentais, fiquem com suas liberdades!" diriam. Nós cuidamos de nossa gente de outro modo. Será mesmo?

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Feitiçaria!

Um tema curioso, e que pouca gente conhece a fundo ou estuda aqui no Brasil: perseguição às bruxas. Afinal, por que ocorreu? Generalizações e anacronismos são recorrentes nos diálogos e mesmo nas formas de representar esse fenômeno histórico, tão comumente retratado mesmo pela grande mídia, em filmes, em programas de TV ou revistas.

Ontem assisti ao filme "O Código da Vinci" (uma trama interessante, desmerecida por uma produção insossa e atuações fraquejantes) no qual, em uma de suas partes, o historiador Leigh, vivido pelo ator Ian McKellen, revela o segredo da trama, afirmando que o legado de Jesus para a continuidade do cristianismo teria sido sua filha, com Maria Madalena, o que teria dado origem à perseguição religiosa às mulheres anos depois, pelo Santo Ofício e por grupos conservadores contrários à revelação desse segredo e da tomada de poder por seus seguidores.

Portanto, o filme exibe a perseguição às mulheres num exagero estatístico, no momento em que Leigh esbraveja a probabilidade de milhões de mulheres terem sido perseguidas e queimadas, graças a uma perseguição fratricida entre segmentos da Igreja Católica.

Faremos aqui uma descontrução dos mitos da perseguição às bruxas, conforme estudamos no verão de 2009, na disciplina Magie, Zauberei und Hexenverfolgung aus kulturgeschichtlicher Perspektive (Magia, feitiçaria e perseguição ás bruxas sob perspectiva da história cultural), lecionada pela Prof. Rita Voltmer, Ph.D., na Universität des Saarlandes, e exibido em seu livro Hexen - wissen was stimmt (Freiburg im Breisgau: Herder, 2008).

Portanto:



1. Durante as perseguições às bruxas 9.000.000 de mulheres foram executadas. A autoria deste cálculo tão elevado se deve a Gottfried Christian Voigt, Conselheiro da cidade de Quedlinburg, que teria partido de um número de 30 processos abertos no século XVI, com acusações de bruxaria, e projetado que, entre os séculos VII e XVII, os nove milhões de mulheres tivessem sido executadas na Europa. Os dados da perseguição foram manipulados por diferentes segmentos, anos mais tarde, como feministas e grupos minoritários, que insistiam em comparar a perseguição às bruxas a um verdadeiro holocausto contra "minorias". O exagero dos números chegou à conta de 20 milhões de mulheres. O número estimado pela literatura atual é entre 50 e 60 mil mulheres perseguidas durante a Idade Moderna, especialmente nos territórios protestantes.


2. As perseguições às bruxas ocorreram nos "obscuros" anos da Idade Média. Os registros históricos revelam que o grosso das perseguições às bruxas ocorreram na Idade Moderna, entre os anos de 1580 e 1650. Tendo se iniciado nos territórios próximos ao lago Genfer (Sabóia, Piemonte, Wallis, Berna), mais ou menos em torno de 1430, o crime de bruxaria foi identificado por teólogos e encontrou apoio em uma estrutura de justiça eclesiástica e temporal, num período de crise moral e econômica na Europa. Portanto, a maior parte das perseguições se concentra na modernidade.


3. O Tribunal da Inquisição foi o maior responsável pelas perseguições e execuções às bruxas. Este talvez o maior mito. Os registros dos processos comandados pela Inquisição, nos locais de sua maior atuação (Espanha, Portugal e Itália), revelam escassíssimas execuções, pelo crime de bruxaria, de mulheres. O crime de heresia, que poderia estar associado a diversas outras práticas, (que não a associação entre pacto com o diabo, o voo, a prática de magia negra, o coito com o demônio) esse sim, tomou largas proporções nas incriminações do Santo Ofício. Sabido é que os locais de religião protestante foram grandes responsáveis pela perseguição às bruxas, num contexto de crises e cismas religiosos(espaços marcados por conflitos religiosos, sobretudo). Lembram-se das bruxas de Salém (contexto protestante)? A justiça punitiva e persecutória estava associada tanto a uma justiça secular quanto religiosa, mas a maior parte das condenãções ocorreu orquestrada por tribunais seculares.


4. Apenas mulheres eram condenadas ao crime de bruxaria. Grande mentira. A maior parte foi sim de mulheres condenadas, pois a própria natureza do crime de bruxaria (ao qual se associavam o trabalho de parteiras e curandeiras, tidas, à época, como bruxas) e alguns aspectos biológicos encarados, à época, como elementos da associação ao demônio (instabilidade de temperamento, etc). Os registros nos revelam, entretanto, que cerca de 25 a 30 porcento das vítimas da caça às bruxas eram compostos de homens.

E, interessante ressaltar, a grande obra Malleus Maleficarum, de Kraemer e Sprenger, que define o que seria o crime de bruxaria, foi abolido pelo Index Librorum Proibitorum e condenado pela Igreja Católica, que jamais usou tais definições e condenou um de seus autores, pela própria Inquisição, por heresia.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

As Minas, minadas


Visitando o livro da historiadora Laura de Mello e Souza, O Sol e a Sombra - Política e Administração na América Portuguesa do século XVIII (São Paulo, Cia das Letras, 2006), fui sacudido pelo tremor das interpretações: os processos históricos confirmam Minas Gerais em sua vocação secundária.


No calor da narrativa- a autora é consciente dos argumentos de que lança mão - do capítulo São Paulo dos Vícios e das Virtudes, é exibido um quadro de homens interessados na empresa desbravadora (com todos os seus riscos e descontentamentos). Esses homens são desenhados como os bravos paulistas, e a impressão que se tem é que Minas Gerais realmente se tornou a sombra de um sol irradiado a partir do vale do Anhangabaú.


Não acreditava que fosse diferente, pelo menos até meus quinze, dezesseis anos. Tendia, até então, a encarar Belo Horizonte como a terceira capital do país, a nova metrópole, e Minas Gerais como o segundo colégio eleitoral e segunda população, um misto de economia de PIB crescente e arrojamento intelectual próprio. Entendia, relativamente, que a hipervalorização de aspectos culturais, como o "mineirês", o queijo, o pão de queijo, o cafezinho e alguns mitos como a enorme estátua de bronze do forjado Tiradentes no cruzamento entre a Av. Brasil e a Afonso Pena fossem apenas elementos de uma idealismo artificial, inventado com o propósito de expurgar certo orgulho ferido, desde a Revolução de 1930.


Acompanhando melhor de perto o desenvolvimento econômico regional, as falhas na condução de certos processos pelas camadas dirigentes levaram ao secundarismo evidente: esse regionalismo exaltado não é nada mais que uma necessidade dos autores da história da capital mineira. Afinal, abandonar o dedim di prosa, o bulim de fubá, a missa na paróquia é algo complicado ao emigrante da pequena cidade do interior. Composta por fluxos migratórios massivamente regionais, Belo Horizonte é, sem dúvida, misto de tradições interioranas e das pretensões da modernidade. Uma grande roça, a bem da verdade.

sábado, 2 de janeiro de 2010

O ano que começa, esbofeteando.

Irrelevância. Esse sentimento, que a bem da verdade é um não-sentimento, negação do que nos faz mais humanos: o furacão de frios na barriga, humores, cóleras, risadas, gargalhadas, ciúmes.

Irrelevância não se sente, se pratica. Vai pela contramão disso tudo. Nunca ouvi ninguém dizer que sentiu outro ser irrelevante. Menosprezo, tudo bem , porque há um certo tom de relevância: reduz-se alguém à condição inferior, por considerá-lo pior que si. Feito o Boris Casoy em rede nacional, que colocou os garis "no alto de suas vassouras" como "mais baixos na escala do trabalho".

Mas a irrelevância, esta é silenciosa, e produz resultados inesperados.

No último dia do ano, voltava para casa, e um daqueles Bichos de Bandeira estava ali, vendo o ano chegar. Que ano? Cobertores, uma catinga de urina, umas latas de tinta, e sua solidão, apática, sob uma laje. E lá estava no dia primeiro também. Sucessões de tempos que engolem aquele ser, e que não se fazem marcar, um presente sem fim, um passado apagado, um futuro que jamais chegará.

Até que grite, encontrando seus iguais. Ou seja eleito inimigo público.

Tantos augúrios!

Dizer "olá" nunca basta. Como aquelas interjeições de telefone: "alô", "oi", "ei". Uma curteza que desmerece a infinitude dos conteúdos possíveis de uma conversa. Mas um princípio é necessário, para qualquer coisa. Ainda que esdrúxulo. Não viemos do pó, segundo as Escrituras?

A boca do lobo, dizem, é uma expressão que na Itália (in bocca al luppo)se diz para desejar boa sorte. Não sei o que há de boa sorte em estar à beira de uma bocarra carnívora, cheia de dentes. Se fosse um lobo banguela, tudo bem. Em português, no entanto, a expressão é usada para designar situações arriscadas: se meter na boca do lobo, ou entrar numa fria.

Num planeta que inventou "indivíduos", e não "comuns", fica fácil designar homens como lobos de outros. E riscos distribuídos aos montes. Vale a pena arriscar-se nisso tudo? Viver é um risco, já dizem muitos. Sorte ou risco, no balanço da corda bamba da vida em sociedade.

Sejam bem vindos.