Este texto foi escrito em meados de julho de 2013.
Um mal-estar aparente
Tentarei
neste texto domar o presente, encerrá-lo
em palavras, dividir a realidade em fragmentos, com o evidente risco
de não dar conta de expressar toda a complexidade
do que acontece no Brasil neste meado de 2013. Nos tempos em que a
escrita, da expressão partilhada de uma racionalidade comunicativa
se encontra cada vez mais destituída de sentido, e as tênues linhas
das emoções – individuais ou coletivas – expressam com muito
maior crueza e vigor a politicidade dos seres humanos.
O mergulho nas compreensões subjetivas é algo extremamente
importante em qualquer análise que se faça. A civilização
ocidental, essa criação fabulosa que grita, irascível, os
preceitos de sua legitimação, e se ensurdece com o mesmo grito,
combinou uma receita altamente danosa, que lhe provocou um profundo
mal-estar, um estado de enfermidade perigoso: a promessa de que
qualquer um pode ser o que quiser, em escolhas e sortes combinadas,
com as representações em diferentes níveis, mas sobretudo no
político, para as quais a mentira e a ilusão são máximas.
A promessa de que qualquer um pode ser o que quiser, na verdade, é a
primeira decepção perante a qual se deparam os seres humanos: a
vontade não é o império da realização, pois o futuro promissor,
as preocupações em torno do crescimento econômico, que seria capaz
de trazer a todos uma vida materialmente próspera, se viu derrapando
nas sucessivas crises de produção, nos desníveis do comércio
internacional, nas formas de concentração e acumulação de
riquezas, e no descompasso entre crescimento demográfico e
crescimento efetivo da renda das famílias.
Afinal, nosce te ipsum, conhece-te a ti mesmo, não significa torna-te o que quiseres. Há uma amarra poderosa da existência humana, da livre expressão do humano profundo. Sua razão é objetiva, concreta, material.
As
representações, no papel de direcionarem as ações humanas
coletivas, isto é, partilhadas por um senso comum, vão caindo por
terra: o que representa uma vida feliz, realizada? Poder
pagar por bens de consumo, carros, viagens, casas, ostentar condições
superficiais de sentido à vida? O que
representa, no nível das decisões
coletivas, a vontade das pessoas? Umas
centenas de eleitos por meio da
manifestação de vontades
despida de sentido, tornada obrigação no
Brasil, alçados como projetadores de esperanças na
promessa de um
futuro próspero, que demora a chegar, ou a alguns poucos chega?
A combinação entre as representações que direcionam as vidas
humanas, e o fracasso da vontade como definidora do destino provoca,
em grande medida, o mal-estar contemporâneo. As promessas do futuro
se desfazem, a individualidade grita para se afirmar e perde as batalhas diante da vitória dos constrangimentos, a
ocidentalidade escolhe a via tortuosa entre o representativo e o
promissor, e se depara com um exército de decepcionados.
Esse processo explica, em parte e de forma genérica, a sensação de
insegurança que é tão comum às pessoas, e o estranho sentimento
de não entenderem ao certo o direcionamento que dão às suas
próprias vidas. De nadarem sempre em benefício e no sentido de uma
mesma maré, repleta de altos e baixos, onde também estão nadadores
afogados e outros mais habilidosos.
A (re)volta ao Brasil
Este mal-estar não é prerrogativa brasileira. O grande pedaço de
América, paraíso abundante de recursos, palco de contradições as
mais distintas e experiências as mais diversas, caiu no infortúnio
contumaz da vida ocidental: promessas se repetem, a vida coletiva é
status de realização em construção – em desenvolvimento. As
representações da vida social constituem ilusões, o jogo das
farsas políticas, em muitos momentos, deixou esquecido pelos cantos
o interesse coletivo, em detrimento dos anseios de grupos que
disputavam o poder: empresários, latifundiários, arrebanhadores de
almas crentes.
Aqui, a manifestação do excesso só é compreensível pela via
antropofágica. Deglutir a cultura que veio, devorá-la por completo,
e regurgitar o visceral, que se faz novo. Essa parece ser a promessa
constituída por esse vasto continente, aos que insistem em estudá-lo
em sua formação idiossincrática. Estudo desnecessário, não
estamos em formação, estamos em conteudização. Forma o Brasil já possui, seu conteúdo é que está sendo diariamente inscrito nos
processos globais hodiernos de significação social.
Quero dizer, o Brasil, ou a tal "civilização brasileira" está
aprofundando aquilo cujo significado, perdido, constituiu o traço
fundamental de um rabisco perverso, que separava forma de conteúdo,
autor de obra: cidadania. Está, afinal, redescobrindo seu todo, e não apenas exibindo as formas ou rearranjando-as. Está preenchendo-as de conteúdo, historicamente esvaziadas.
Correto. O vaivém de primaveras árabe, movimento dos indignados,
ocuppies e outras formas de insatisfação parecia distante, ao mesmo
tempo que conectado à solidariedade cibernética deste lado de cá.
Aqui vínhamos digerindo aos poucos essas realidades aparentemente
distantes, e observando, dia após dia, a sucessão de problemas que
ora se acirravam, ora evanesciam, ao sabor das crises, dos ânimos e
das disputas institucionais e sociais domésticas. Essa mistura entre
o doméstico e o estrangeiro, se durante muito tempo alicerçou as
bases de “formação da civilização brasileira”, foi absorvido
pelo mal-estar próprio da vida ocidental, nos tempos mais recentes,
e combinou-se de forma explosiva para diferentes setores da vida
urbana neste país.
A urbe, cidade das promessas
Pois na cidade brasileira, sobretudo na grande cidade brasileira é
que as contradições se fizeram evidentes. Pelo menos quinze cidades
brasileiras possuem mais de um milhão de habitantes, número
bastante significativo, se considerarmos que a região metropolitana
de uma delas, precisamente São Paulo, concentra cerca de um décimo
da população do país.
E não à toa é em São Paulo que a cidade imensa, de fartas
promessas e do acelerado crescimento populacional fruto da também
acelerada industrialização, deu início a uma série de protestos e
manifestações, que hoje são encarados como desencadeadores do
outono brasileiro. O outono que enche ruas de insatisfeitos, em busca
de manifestarem o sufocado, extravasar o que ficou jogado aos cantos,
esquecido por promessas e desamparado de respostas.
São Paulo, surpresa quente de 2013, porque contrariou expectativas
historicamente construídas, de uma sociedade marcada pela pujança
econômica alicerçada num espírito faminto de seres que se
atribuíam a responsabilidade por sua própria sorte. Livres,
bandeirantes, quase predestinados, que viveram o intenso e violento
processo de urbanização e industrialização no século passado,
construindo uma sociedade na qual surgiram segmentos urbanos avessos à conformação política brasileira, à
diversidade regional e que se arroga(va)m, não raro, como os motores e
alicerces econômicos do país.
Sua sorte, contudo, foi tão infeliz – ou ainda mais – que a de
muitos dos que habitam as grandes cidades brasileiras, onde viver bem
parece um projeto longínquo, sem consistir preocupação de
mandatários eleitos. Colapsou-se.
O Movimento Passe Livre, com origem no começo deste século XXI,
construiu sua pauta a partir da necessidade de apropriação espacial
da grande cidade brasileira. Quase sempre essa cidade é constituída
de um centro rico e dinâmico, onde se concentram boa parte dos
serviços, do comércio, das empresas e dos escritórios, e de uma
periferia pobre, populosa e alijada da vida comum nesse espaço
urbano. Desamparada de serviços, muitas vezes desatendida de lazer,
e jogada ao esquecimento dos serviços públicos e do dinamismo da
iniciativa privada. A pauta do transporte na cidade grande, portanto,
é a pauta que coloca no centro das atenções esse conjunto de
expectativas das pessoas que habitam uma grande cidade, que objetivam
não apenas trabalhar no centro da cidade, mas usufruir dela de forma
democrática, igual, descentralizada, negando o direito exclusivo de
alguns poucos segmentos sociais. Locomover-se livremente na cidade é
apropriar-se de seus diferentes espaços, sem os muros habituais que
separam centro da periferia.
É na cidade grande brasileira que esses muros são afirmados pela
presença ostensiva de forças policiais, que infelizmente ainda
pregam um modelo que privilegia suspeitas aparentes em estereótipos,
para constituir flagrantes. Flagrantes, revistas, rondas e
apreensões, que na maior parte das vezes recaem sobre as regiões
periféricas das cidades, habitadas por pretos, pobres, à margem da
apropriação de um espaço não diferente do que lhe foi colocado
como “seu”. Seu espaço, sua gente, sua diferença, infelizmente
distanciada da cidade centro, que pulsa com seus excessos e suas
promessas, que um dia trouxeram retirantes e novos moradores que
construíram a mesma cidade. O centro tem seu alicerce na diferença
com relação à periferia. E na indiferença de quem o habita em
relação a quem habita a periferia e vive, quotidianamente, as
opressões costumeiras do sistema, que mata diariamente milhares de
jovens pretos entre 18 e 25 anos nas grandes cidades brasileiras.
A distância contorce a comunicação. O conflito se oculta aos
cantos, se abafa na periferia, se remodela, distante dos olhos
centrais. E quando ameaça eclodir, as mesmas forças policiais agem
com a resposta repressora, imediata.
A distância precisava ser afirmada
ainda mais, entre essas duas cidades brasileiras, quando os grandes
eventos se tornaram a pauta prioritária da agenda política recente.
Remoções forçadas, desocupação de espaços públicos, ocultação
de moradores de ruas, o debate sobre internação compulsória de
usuários de crack, um estado de coisas absolutamente ilusório,
maquiado, que buscava ocultar as mazelas construídas no espaço
urbano, desculpem o uso da expressão, mas muito certeira, “para
inglês ver”.
O direito à moradia, sucessivamente negado a parcelas da população
pelo poder público, em programas de financiamento fabulosos, para os
quais muitas vezes os mais pobres jamais poderiam fazer parte,
enquanto empreiteiras valorizavam terrenos e jogavam o perverso jogo
da especulação imobiliária, ressaltava ainda mais a distribuição
desigual do espaço urbano brasileiro.
Justificadas as bandeiras dos protestos? Sim e
não. Razões não faltariam para sair às ruas e gritar,
clamar por um outro projeto de cidade. Mas não seriam, ao mesmo
tempo, as motivações que levariam outras tantas cifras humanas às
ruas. Não há cadeia causal, linear, no processo de ocupação das
ruas brasileiras, há, isso sim, uma insatisfação geracional,
geração que pouco havia experimentado, com tamanha força, a rua,
este fantástico cenário dos indignados.
A cidade é a causa, pois é na cidade que a maior parte do país
vive e se desencanta. É na cidade onde sonhos se interrompem e
esperanças se alimentam. Mas não é a cidade a causa primeira, e
nem a última para o grito do outono. O início da onda de protestos
com o movimento passe livre desencadeou, com jovem vigor, um
aprendizado importante e indecifrável para quem não estivesse por
ali. Afinal, por que tanta repressão? Por se
querer ou se lutar por uma sociedade melhor? Por gritar o que se
pensa? Por não ter medo de fazê-lo? Por
simplesmente ocupar a cidade, na qual a máquina e o motor são
soberanos, e ditam a ordem lógica de seu tempo?
A violência da sociedade brasileira,
costumeiramente encoberta e adoçada pela cordialidade cultural,
demonstrou sua voracidade: acertou em cheio setores médios urbanos,
para os quais os dramas habituais de repressão que vivem os
habitantes de periferias jamais foram tão evidentes. Essa onda de
repressão policialesca encorajou os amedrontados, escondidos no
manto de suas opressões diárias, a sair, e gritar. Gritar num
movimento crescente, desconcertado, na esperança de ser ouvido,
entre os gritos de uma competição internacional de futebol que se
anunciavam.
Isto
aqui que vivemos não é nem foi nenhuma primavera. É um outono, no
qual, em vez de folhas das árvores, espera-se que caiam as máscaras
das representações – sobretudo políticas - , que pouco comunicam
e, de forma muito débil, representam. E
que o inverno não esfrie, sucedâneo, a chama que nos move em
direção ao
aprofundamento e radicalização desta jovem democracia.
Política e polícia: o simbólico como erro do sistema
Essa se coloca como chave explicativa: a democracia, suas regras de
funcionamento e sua cara nada democrática. A democracia brasileira
me faz lembrar uma charge do Angeli, esta aí embaixo: é uma festa só para os sócios do club privé:
A relação entre Estado e sociedade civil ainda não foi bem
equacionada no Brasil. Mesmo com os avanços das formas de
participação da segunda no primeiro, com a composição de
conselhos de políticas públicas por movimentos da sociedade civil
organizada, com as consultas públicas e audiências, ou ainda, a
experiência pioneira de orçamentos participativos, a cidadania
democrática e popular sofreu, nos últimos dois anos, uma clivagem
importante: a excessiva burocratização das decisões políticas,
cada vez mais tomadas e concebidas em gabinetes, e cada vez menos em
sintonia com as vozes organizadas da sociedade civil.
Esse fator é algo importante no processo, e precisa ser corretamente
avaliado. O espaço concedido aos movimentos sociais na composição
dos governos petistas nos últimos anos criou, por um lado, uma
importante agenda política para o país e, por outro, uma espécie
de acomodação desses mesmos governos: a falsa noção de que as
instâncias participativas garantiriam a permanência dessa agenda
popular, dos interesses da sociedade civil organizada e de um projeto
de país que evitasse o conflito por meio da participação
democrática.
Acontece que essa agenda não se permaneceu. E não se permaneceu, ou
foi desviada, exatamente pela excessiva burocratização decisória,
marcada pelo tecnicismo governativo, pelos impulsos das decisões de
gabinete, por um congresso desmoralizado politicamente, no qual a
representação política se traduz quase sempre e somente em
obtenção de vantagens pessoais, fisiologismo e trocas entre
financiadores de campanha polpudos e votações descaradamente
óbvias. Escassas são as propostas levadas a sério, apresentadas e
elaboradas por congressistas.
O jogo precisa ser jogado, de forma plena, por seus protagonistas. A distância das várias cidades se justifica no uso da força policial, essa máquina fabulosa de arbitrariedades, pré-juízos e estereótipos, tão característicos de sistemas autoritários, em que nenhum argumento minimamente racional é capaz de espancar, sequer levantar um dedo, contra a supremacia da vontade, arbitral, estatal, institucional, estúpida. Esse resquício fabuloso permanece distribuindo bônus aos ganhadores do jogo social, que espelham neste país imenso, de várias cidades imensas, outros imensos abismos entre centro e periferia, entre norte e sul, entre pretos e brancos, entre pobres e ricos, entre Zona Norte e Zona Sul.
Polícia tem um papel simbólico e efetivo, e a política represent-ativa, idem. Represent-passiva? Tampouco. Pois nem mesmo na passividade de espectador, que vê diante de seus olhos a convulsão incerta, o agarramento do virtual e o ajuntamento real dessa fauna pós-moderna, fervilhante, foram capazes de uma mudança mais aprofundada sobre suas condutas. O jogo real segue nos símbolos de uma ordem violenta. Crua, que transparece como paz democrática. Como estabilidade institucional, como força mágica da vontade. "Confirma" uma tecla verde, cria-se uma fábula. A fábula do desinteresse dos apertadores de teclas, e a fábula do interesse dos conduzidos aos assentos, por uma mágica distinta, mas não menos verde que o botão. Notas verdes e pretas, que fazem estádios, mas não transportes, fazem fantasias, mas não escolas, nem centros de saúde, nem hospitais. A palavra de ordem é uma só: erro. Percebemos.
Essa simbologia do ordeiro, do capaz de permanecer, reproduzir-se, manter-se foi afinal desafiada. O sistema não pode ser baseado em erro sequencial. Pifa.
O ciberespaço comprova. Erros costumam exigir que o sistema se reinicie. O ciberespaço cosmoPOLITIZA o humano. O saber, o discurso, a compreensão, a informação, afinal, saíram da roda Acropolítica, encastelada, de meia dúzia de deuses e deusas. É o período de uma agorapolitica, aberta, nas ruas. E sem agorafobia.
Estamos engolindo nosso passado, amargo. E digerindo o presente. O futuro, está ali, à nossa frente, pronto para que o devoremos.