"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Sacanagem


Havia um plástico. Olhar para fora era uma atividade cansativa, porque perdida. Frustrante. Pessoas passavam num ritmo absolutamente sacana. Sacanagem mesmo, entende? Com suas sacanices diárias, ocupadas entre um café ruim da padaria da esquina, um cigarro fedido comprado com o troco do supermercado, um converseiro fiado sobre o último jogo tedioso da copa do Brasil, esbravejações que não davam conta sequer dos porquês de terem mudado a placa da rua de lugar, e se aventuravam em analisar a situação geral do país, da corrupção, da sordidez humana.

Toda essa sacanagem era viva, eloquente, pulsante. Misturava-se com o suor ensebado do catador de papel que empurrava a carroça, com o perfume barato deixado pelas putas que na noite anterior na esquina abaixavam vidros e neles se apoiavam, com quadris erguidos e cadenciados com joelhos dançantes. Misturava-se com o cheiro do cigarro fedido e do café ruim, do cocô da Sophia largado pela madame decadente como aquele centro imundo. A sacanagem tinha o cheiro do couro da pasta nova do Armando, promovido a gerente. Era gerente! Sua nova fantasia era gerenciar papeis, planilhas, o espaço insólito dos números. Gerenciava a fortuna alheia, enquanto a úlcera o comia e o tempo também. Comia mesmo, por dentro e por detrás, na mais sacana sacanagem. 

E havia uma série de motivos para que essa sacanagem fosse vista através de um plástico. Uma bolha de distanciamento, translúcida. A sacanagem passava com a luz por essa bolha, chegava a seus olhos compreensivos. Mas não se sentia parte da sacanagem. Esse voyeurismo, que perdia em vários quesitos para a  pornografia mais imunda disponível nos circuitos, não tinha razão de ser. Apenas era, e crescia como um sentimento de impáfia: eu não sou sacana. "Sou puro, perfeito, limpo, uma candura de ser", pensava. 

Enquanto os sacanas viviam suas vidas repletas de sacanagem vistas daquela sacada, seu saco de pensamentos se enchia. Eram sacanas que, como rolhas, foram sacados de suas garrafas interiores, de espumantes, e jorravam algo espirituoso, excessivo, borbulhante. Via a efusão, enquanto permanecia lá, rolha, entupindo sua vida. 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Mesopotâmia nas garras do Hoax


Recebi dia desses um e-mail, essas bombas sensacionalistas que deseducam as pessoas, despertam algumas curiosidades, movem crenças tolas. Vulgo: hoax.

Basicamente, o texto ressaltava toda a coincidência entre a região da Mesopotâmia e as inúmeras passagens bíblicas que aconteceram na região, dando a entender que se trataria de uma terra abençoada, santa, escolhida por Javé para seus feitos gloriosos e suas fúrias típicas do velho testamento, sem contudo aprofundar uma análise historicamente mais bem situada. O texto termina com uma pérola profética, como veremos a seguir. 



Basicamente, o que diz o e-mail:



1. Que o Jardim do Éden se localizava no Iraque. Bem, é uma especulação elaborada por teorias contemporâneas. Não é possível ter plena certeza dessa afirmação, mas o arqueólogo Juris Zarins afirma que sim, coincidindo imagens de satélites com descrições sobre os rios que formariam a região. O rio Gihon seria o rio Karun, no Irã, e o rio Pishon seria o sistema hídrico de Wadi Batin, que desceria até o golfo pérsico, próximo à estreita faixa litorânea do atual Iraque, região conhecida pela fertilidade de seus solos.



2. Mesopotâmia, onde agora é o Iraque, foi o berço da civilização. Bem, o berço de várias civilizações, pois a "civilização" é um conceito amplo, e seres humanos trabalhando  e se organizando socialmente já existiam milênios antes do nascimento de Cristo, em vários pontos do globo terrestre. A Região entre os rios Tigre e Eufrates abarcou um número gigantesco de impérios e civilizações, de assírios, acádios, sumérios, aquemênidas, hititas. Civilizações conhecidas por seus complexos sistemas religiosos, legais, por suas técnicas de plantio e irrigação, pelas táticas de guerra, por cidades, zigurates e palácios. 



3. Noé construiu a arca no Iraque. Sim, as origens de um dos povos que ocupou futuramente a região de Israel, os cananeus, estão profundamente entrelaçadas com o Iraque. O Pentateuco (5 primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteromônio, que compõem a Torá hebraica) foi escrito não anteriormente ao século X a.C. Vejam que cananita vem de Canaã,  por sua vez filho de Cam, que por sua vez foi filho de Noé. Cam foi um patriarca importante, nos relatos bíblicos de povoamento da região que hoje corresponde ao Iraque, Síria, Líbano e mesmo a Israel. Não custa lembrar: o dilúvio não é um relato original ou único na Bíblia cristã, ele está presente nos relatos de Atrahasis e de Gilgamesh da civilização acadiana, que coincidem com o período histórico de algo em torno de 2000 anos antes de Cristo. Estamos falando de uma região sujeita a cheias e vazões dos rios Tigre e Eufrates com frequência.





4. A Torre de Babel ficava no Iraque. Sim. Vejamos a passagem bíblica do Gênesis: "Ora toda a terra tinha uma só linguagem e um só modo de falar. Viajando os homens para o Oriente, acharam uma planície na terra de Sinear (Suméria); e ali habitaram." A necessidade de se fixar em um local propício ao plantio foi uma constante na região do Oriente Médio. Os povos que migraram muito provavelmente não falavam a mesma língua que a da civilização que ali já habitava, séculos antes. Lembremo-nos que a civilização babilônica foi conhecida por seus templos e zigurates enormes, dedicados às divindades a que prestavam culto (Marduk, Ishtar, Adad, e outros). Babel, em acadiano, de bab-ilu, significa "porta de deus". 




5. Abraão era de Ur, que ficava no sul do Iraque. Sim, o relato bíblico menciona claramente a cidade de Ur. Ur é uma das cidades mais antigas da história da região, e abrigava os caldeus. Abraão é o pai das religiões monoteístas, tendo revelado sua aliança com Deus por meio de sacrifícios (algo que restou da tradição politeísta então vigente, oferecer animais em sacrifício dos deuses). Abrãao teria vivido, segundo estudiosos, entre os séculos XVIII e XIX antes de Cristo, e é considerado o pai das três grandes religiões monoteístas, em razão de sua aliança com o Deus único: o islamismo (seu filho Ishma-el, Ismael, teria dado origem ao povo árabe), o judaísmo e o cristianismo. 






6. A esposa de Isaac, Rebeca, era de Nahor, que ficava no Iraque. Legal, fera. Se Isaac era filho de Abraão, um "iraquiano", nada mais natural que tivesse uma esposa de origens semelhantes, e que houvesse mais gente originária dessa região, migrando e andando por Canaã, certo?

7. Jacó encontrou-se com Raquel no Iraque. Raquel viveu no período da primeira destruição do templo de Jerusalém pelos babilônicos. Jeremias relata que essa mulher teria chorado, pela dispersão de seu povo. Ora, as andanças dessas pessoas pelo Oriente não surpreende ninguém, mais uma vez. 


8. Jonas rezou em Nínive, que ficava no Iraque. Sim, Nínive era a capital do Império Assírio. Jonas foi um enviado de Deus, segundo os relatos bíblicos, para avisar: aos Assírios que se arrependessem do derramamento de sangue que praticavam. O Império Assírio ficou conhecido por suas táticas de guerra poderosas, e pela dominação de vários povos na região, tendo inclusive dominado a região da Palestina. Uma guerra de forças entre uma civilização pequena e espremida, a dos hebreus, que afirmava sua força como "eleita por Deus", diante da força dos exércitos da região. 



9. A Assíria, que ficava no Iraque, conquistou as dez tribos de Israel. e 10. Babilônia, que ficava no Iraque, destruiu Jerusalém. Sim, afinal, impérios organizados, fortes e complexos, baseados na guerra, sobrepuseram-se a uma região ainda em formação, tribal, e disputada por outros povos. Tratam-se dos dois cativeiros do povo hebreu: o assírio e o babilônico. Nabucodonosor II, rei da Babilônia, que libertou o reino Assírio do jugo de Nínive, expandiu os domínios até o Egito e a Síria, e dominou inclusive a Palestina. Uma série de judeus foram então deportados de sua região, o antigo reino de Judá; trata-se da primeira destruição do templo em Jerusalém e primeiro grande êxodo do "povo escolhido". A dominação babilônica tem grande papel simbólico na descrição bíblica: Babilônia é sinônimo de confusão, pecado e luxúria. Essa visão retrata o que possivelmente representou a dominação agressiva, violenta, dos povos de Judá, quando cativos na região do atual Iraque, dando origem aos relatos dos profetas Jeremias, Ezequiel e Daniel do velho Testamento. 

(E outros simbolismos mais: origem dos Reis Magos, Baltazar, Nabucodonosor levando os cativos hebreus ao Iraque, Daniel na cova dos Leões, etc.)


Muito bem. 



O tal e-mail abrilhanta-se ao fim, ao dizer que o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, revelado a Maomé por Deus, conteria a seguinte frase, em 9:11: 


"....aquele descrito como o filho da Arábia será acuado por uma águia amedrontadora.As garras da águia serão sentidas por todas as terras de Allah e Lot, quando algum dos povos tremerão no desespero e no júbilo. Quando as garras limparem as terras de Allah, haverá paz."

Nada mais falso. Pegaram o tal 9:11 para uma associação mística com o 9/11, como escrevem os estadunidenses a data de 11 de setembro.

Vejamos o que de fato diz a Surata 9, versículo 11 do Corão: 








fa-in taabuu wa-aqaamuu alshshalaata waaatawuu alzzakaata fa-ikhwaanukum fii alddiini wanufashshilu al-aayaati liqawmin ya'lamuuna 


9.11 . "Mas, se se arrependerem, observarem a oração e pagarem o zakat, então serão vossos irmãos na religião, combatei os chefes incrédulos, pois são perjuros; talvez se refreiem."

A Surata (assim é o nome dos capítulos da escritura sagrada do Islã) número 9, versículo 11, não faz nenhuma referência à águia. Não há qualquer referência à águia em todo o Alcorão. Nem há, ao longo de todo o texto, qualquer menção a "Arábia". Essa noção geográfica não existia à época, as terras onde o Islã se expandiu se dividiam conforme suas origens e povos que nelas viviam. 

O Zakat é um tributo religioso, é um dos pilares da fé islâmica. Como se fosse um dízimo, só que obrigatório para essa religião.

Então não há nenhuma profecia quanto ao 11 de setembro, nem à guerra contra o Iraque, nem à suposta Paz promovida pela guerra na região, no texto do Corão. 



O texto é cretino, pois afirma que a própria escritura sagrada do Islã teria previsto que a paz no Oriente Médio se daria no dia em que a Águia (símbolo dos Estados Unidos da América) impusesse seu medo às terras da "Arábia". Sinceramente...

Aliás, sabemos bem que 11 de setembro e Guerra do Iraque foram relacionados de forma tosca e sádica pelo serviço de inteligência norte-americano, que batizou metade do Oriente Médio como "Eixo do Mal". Surrealismo efetivo, que descambou nessa guerra estúpida que vimos acontecer há mais de dez anos. 




quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O outono brasileiro: antropofagia do futuro



Este texto foi escrito em meados de julho de 2013. 

Um mal-estar aparente

Tentarei neste texto domar o presente, encerrá-lo em palavras, dividir a realidade em fragmentos, com o evidente risco de não dar conta de expressar toda a complexidade do que acontece no Brasil neste meado de 2013. Nos tempos em que a escrita, da expressão partilhada de uma racionalidade comunicativa se encontra cada vez mais destituída de sentido, e as tênues linhas das emoções – individuais ou coletivas – expressam com muito maior crueza e vigor a politicidade dos seres humanos.

O mergulho nas compreensões subjetivas é algo extremamente importante em qualquer análise que se faça. A civilização ocidental, essa criação fabulosa que grita, irascível, os preceitos de sua legitimação, e se ensurdece com o mesmo grito, combinou uma receita altamente danosa, que lhe provocou um profundo mal-estar, um estado de enfermidade perigoso: a promessa de que qualquer um pode ser o que quiser, em escolhas e sortes combinadas, com as representações em diferentes níveis, mas sobretudo no político, para as quais a mentira e a ilusão são máximas.

A promessa de que qualquer um pode ser o que quiser, na verdade, é a primeira decepção perante a qual se deparam os seres humanos: a vontade não é o império da realização, pois o futuro promissor, as preocupações em torno do crescimento econômico, que seria capaz de trazer a todos uma vida materialmente próspera, se viu derrapando nas sucessivas crises de produção, nos desníveis do comércio internacional, nas formas de concentração e acumulação de riquezas, e no descompasso entre crescimento demográfico e crescimento efetivo da renda das famílias.

Afinal, nosce te ipsum, conhece-te a ti mesmo, não significa torna-te o que quiseres. Há uma amarra poderosa da existência humana, da livre expressão do humano profundo. Sua razão é objetiva, concreta, material. 

As representações, no papel de direcionarem as ações humanas coletivas, isto é, partilhadas por um senso comum, vão caindo por terra: o que representa uma vida feliz, realizada? Poder pagar por bens de consumo, carros, viagens, casas, ostentar condições superficiais de sentido à vida? O que representa, no nível das decisões coletivas, a vontade das pessoas? Umas centenas de eleitos por meio da manifestação de vontades despida de sentido, tornada obrigação no Brasil, alçados como projetadores de esperanças na promessa de um futuro próspero, que demora a chegar, ou a alguns poucos chega?

A combinação entre as representações que direcionam as vidas humanas, e o fracasso da vontade como definidora do destino provoca, em grande medida, o mal-estar contemporâneo. As promessas do futuro se desfazem, a individualidade grita para se afirmar e perde as batalhas diante da vitória dos constrangimentos, a ocidentalidade escolhe a via tortuosa entre o representativo e o promissor, e se depara com um exército de decepcionados.

Esse processo explica, em parte e de forma genérica, a sensação de insegurança que é tão comum às pessoas, e o estranho sentimento de não entenderem ao certo o direcionamento que dão às suas próprias vidas. De nadarem sempre em benefício e no sentido de uma mesma maré, repleta de altos e baixos, onde também estão nadadores afogados e outros mais habilidosos.

A (re)volta ao Brasil

Este mal-estar não é prerrogativa brasileira. O grande pedaço de América, paraíso abundante de recursos, palco de contradições as mais distintas e experiências as mais diversas, caiu no infortúnio contumaz da vida ocidental: promessas se repetem, a vida coletiva é status de realização em construção – em desenvolvimento. As representações da vida social constituem ilusões, o jogo das farsas políticas, em muitos momentos, deixou esquecido pelos cantos o interesse coletivo, em detrimento dos anseios de grupos que disputavam o poder: empresários, latifundiários, arrebanhadores de almas crentes.

Aqui, a manifestação do excesso só é compreensível pela via antropofágica. Deglutir a cultura que veio, devorá-la por completo, e regurgitar o visceral, que se faz novo. Essa parece ser a promessa constituída por esse vasto continente, aos que insistem em estudá-lo em sua formação idiossincrática. Estudo desnecessário, não estamos em formação, estamos em conteudização. Forma o Brasil já possui, seu conteúdo é que está sendo diariamente inscrito nos processos globais hodiernos de significação social.

Quero dizer, o Brasil, ou a tal "civilização brasileira" está aprofundando aquilo cujo significado, perdido, constituiu o traço fundamental de um rabisco perverso, que separava forma de conteúdo, autor de obra: cidadania. Está, afinal, redescobrindo seu todo, e não apenas exibindo as formas ou rearranjando-as. Está preenchendo-as de conteúdo, historicamente esvaziadas.

Correto. O vaivém de primaveras árabe, movimento dos indignados, ocuppies e outras formas de insatisfação parecia distante, ao mesmo tempo que conectado à solidariedade cibernética deste lado de cá. Aqui vínhamos digerindo aos poucos essas realidades aparentemente distantes, e observando, dia após dia, a sucessão de problemas que ora se acirravam, ora evanesciam, ao sabor das crises, dos ânimos e das disputas institucionais e sociais domésticas. Essa mistura entre o doméstico e o estrangeiro, se durante muito tempo alicerçou as bases de “formação da civilização brasileira”, foi absorvido pelo mal-estar próprio da vida ocidental, nos tempos mais recentes, e combinou-se de forma explosiva para diferentes setores da vida urbana neste país.

A urbe, cidade das promessas

Pois na cidade brasileira, sobretudo na grande cidade brasileira é que as contradições se fizeram evidentes. Pelo menos quinze cidades brasileiras possuem mais de um milhão de habitantes, número bastante significativo, se considerarmos que a região metropolitana de uma delas, precisamente São Paulo, concentra cerca de um décimo da população do país.

E não à toa é em São Paulo que a cidade imensa, de fartas promessas e do acelerado crescimento populacional fruto da também acelerada industrialização, deu início a uma série de protestos e manifestações, que hoje são encarados como desencadeadores do outono brasileiro. O outono que enche ruas de insatisfeitos, em busca de manifestarem o sufocado, extravasar o que ficou jogado aos cantos, esquecido por promessas e desamparado de respostas.

São Paulo, surpresa quente de 2013, porque contrariou expectativas historicamente construídas, de uma sociedade marcada pela pujança econômica alicerçada num espírito faminto de seres que se atribuíam a responsabilidade por sua própria sorte. Livres, bandeirantes, quase predestinados, que viveram o intenso e violento processo de urbanização e industrialização no século passado, construindo uma sociedade na qual surgiram segmentos urbanos avessos à conformação política brasileira, à diversidade regional e que se arroga(va)m, não raro, como os motores e alicerces econômicos do país.

Sua sorte, contudo, foi tão infeliz – ou ainda mais – que a de muitos dos que habitam as grandes cidades brasileiras, onde viver bem parece um projeto longínquo, sem consistir preocupação de mandatários eleitos. Colapsou-se.

O Movimento Passe Livre, com origem no começo deste século XXI, construiu sua pauta a partir da necessidade de apropriação espacial da grande cidade brasileira. Quase sempre essa cidade é constituída de um centro rico e dinâmico, onde se concentram boa parte dos serviços, do comércio, das empresas e dos escritórios, e de uma periferia pobre, populosa e alijada da vida comum nesse espaço urbano. Desamparada de serviços, muitas vezes desatendida de lazer, e jogada ao esquecimento dos serviços públicos e do dinamismo da iniciativa privada. A pauta do transporte na cidade grande, portanto, é a pauta que coloca no centro das atenções esse conjunto de expectativas das pessoas que habitam uma grande cidade, que objetivam não apenas trabalhar no centro da cidade, mas usufruir dela de forma democrática, igual, descentralizada, negando o direito exclusivo de alguns poucos segmentos sociais. Locomover-se livremente na cidade é apropriar-se de seus diferentes espaços, sem os muros habituais que separam centro da periferia.

É na cidade grande brasileira que esses muros são afirmados pela presença ostensiva de forças policiais, que infelizmente ainda pregam um modelo que privilegia suspeitas aparentes em estereótipos, para constituir flagrantes. Flagrantes, revistas, rondas e apreensões, que na maior parte das vezes recaem sobre as regiões periféricas das cidades, habitadas por pretos, pobres, à margem da apropriação de um espaço não diferente do que lhe foi colocado como “seu”. Seu espaço, sua gente, sua diferença, infelizmente distanciada da cidade centro, que pulsa com seus excessos e suas promessas, que um dia trouxeram retirantes e novos moradores que construíram a mesma cidade. O centro tem seu alicerce na diferença com relação à periferia. E na indiferença de quem o habita em relação a quem habita a periferia e vive, quotidianamente, as opressões costumeiras do sistema, que mata diariamente milhares de jovens pretos entre 18 e 25 anos nas grandes cidades brasileiras.

A distância contorce a comunicação. O conflito se oculta aos cantos, se abafa na periferia, se remodela, distante dos olhos centrais. E quando ameaça eclodir, as mesmas forças policiais agem com a resposta repressora, imediata.

A distância precisava ser afirmada ainda mais, entre essas duas cidades brasileiras, quando os grandes eventos se tornaram a pauta prioritária da agenda política recente. Remoções forçadas, desocupação de espaços públicos, ocultação de moradores de ruas, o debate sobre internação compulsória de usuários de crack, um estado de coisas absolutamente ilusório, maquiado, que buscava ocultar as mazelas construídas no espaço urbano, desculpem o uso da expressão, mas muito certeira, “para inglês ver”.

O direito à moradia, sucessivamente negado a parcelas da população pelo poder público, em programas de financiamento fabulosos, para os quais muitas vezes os mais pobres jamais poderiam fazer parte, enquanto empreiteiras valorizavam terrenos e jogavam o perverso jogo da especulação imobiliária, ressaltava ainda mais a distribuição desigual do espaço urbano brasileiro.

Justificadas as bandeiras dos protestos? Sim e não. Razões não faltariam para sair às ruas e gritar, clamar por um outro projeto de cidade. Mas não seriam, ao mesmo tempo, as motivações que levariam outras tantas cifras humanas às ruas. Não há cadeia causal, linear, no processo de ocupação das ruas brasileiras, há, isso sim, uma insatisfação geracional, geração que pouco havia experimentado, com tamanha força, a rua, este fantástico cenário dos indignados.

A cidade é a causa, pois é na cidade que a maior parte do país vive e se desencanta. É na cidade onde sonhos se interrompem e esperanças se alimentam. Mas não é a cidade a causa primeira, e nem a última para o grito do outono. O início da onda de protestos com o movimento passe livre desencadeou, com jovem vigor, um aprendizado importante e indecifrável para quem não estivesse por ali. Afinal, por que tanta repressão? Por se querer ou se lutar por uma sociedade melhor? Por gritar o que se pensa? Por não ter medo de fazê-lo? Por simplesmente ocupar a cidade, na qual a máquina e o motor são soberanos, e ditam a ordem lógica de seu tempo?

A violência da sociedade brasileira, costumeiramente encoberta e adoçada pela cordialidade cultural, demonstrou sua voracidade: acertou em cheio setores médios urbanos, para os quais os dramas habituais de repressão que vivem os habitantes de periferias jamais foram tão evidentes. Essa onda de repressão policialesca encorajou os amedrontados, escondidos no manto de suas opressões diárias, a sair, e gritar. Gritar num movimento crescente, desconcertado, na esperança de ser ouvido, entre os gritos de uma competição internacional de futebol que se anunciavam.

Isto aqui que vivemos não é nem foi nenhuma primavera. É um outono, no qual, em vez de folhas das árvores, espera-se que caiam as máscaras das representações – sobretudo políticas - , que pouco comunicam e, de forma muito débil, representam. E que o inverno não esfrie, sucedâneo, a chama que nos move em direção ao aprofundamento e radicalização desta jovem democracia.

Política e polícia: o simbólico como erro do sistema

Essa se coloca como chave explicativa: a democracia, suas regras de funcionamento e sua cara nada democrática. A democracia brasileira me faz lembrar uma charge do Angeli, esta aí embaixo: é uma festa só para os sócios do club privé:



A relação entre Estado e sociedade civil ainda não foi bem equacionada no Brasil. Mesmo com os avanços das formas de participação da segunda no primeiro, com a composição de conselhos de políticas públicas por movimentos da sociedade civil organizada, com as consultas públicas e audiências, ou ainda, a experiência pioneira de orçamentos participativos, a cidadania democrática e popular sofreu, nos últimos dois anos, uma clivagem importante: a excessiva burocratização das decisões políticas, cada vez mais tomadas e concebidas em gabinetes, e cada vez menos em sintonia com as vozes organizadas da sociedade civil.

Esse fator é algo importante no processo, e precisa ser corretamente avaliado. O espaço concedido aos movimentos sociais na composição dos governos petistas nos últimos anos criou, por um lado, uma importante agenda política para o país e, por outro, uma espécie de acomodação desses mesmos governos: a falsa noção de que as instâncias participativas garantiriam a permanência dessa agenda popular, dos interesses da sociedade civil organizada e de um projeto de país que evitasse o conflito por meio da participação democrática.


Acontece que essa agenda não se permaneceu. E não se permaneceu, ou foi desviada, exatamente pela excessiva burocratização decisória, marcada pelo tecnicismo governativo, pelos impulsos das decisões de gabinete, por um congresso desmoralizado politicamente, no qual a representação política se traduz quase sempre e somente em obtenção de vantagens pessoais, fisiologismo e trocas entre financiadores de campanha polpudos e votações descaradamente óbvias. Escassas são as propostas levadas a sério, apresentadas e elaboradas por congressistas.

O jogo precisa ser jogado, de forma plena, por seus protagonistas. A distância das várias cidades se justifica no uso da força policial, essa máquina fabulosa de arbitrariedades, pré-juízos e estereótipos, tão característicos de sistemas autoritários, em que nenhum argumento minimamente racional é capaz de espancar, sequer levantar um dedo, contra a supremacia da vontade, arbitral, estatal, institucional, estúpida. Esse resquício fabuloso permanece distribuindo bônus aos ganhadores do jogo social, que espelham neste país imenso, de várias cidades imensas, outros imensos abismos entre centro e periferia, entre norte e sul, entre pretos e brancos, entre pobres e ricos, entre Zona Norte e Zona Sul.

Polícia tem um papel simbólico e efetivo,  e a política represent-ativa, idem. Represent-passiva? Tampouco. Pois nem mesmo na passividade de espectador, que vê diante de seus olhos a convulsão incerta, o agarramento do virtual e o ajuntamento real dessa fauna pós-moderna, fervilhante, foram capazes de uma mudança mais aprofundada sobre suas condutas. O jogo real segue nos símbolos de uma ordem violenta. Crua, que transparece como paz democrática. Como estabilidade institucional, como força mágica da vontade. "Confirma" uma tecla verde, cria-se uma fábula. A fábula do desinteresse dos apertadores de teclas, e a fábula do interesse dos conduzidos aos assentos, por uma mágica distinta, mas não menos verde que o botão. Notas verdes e pretas, que fazem estádios, mas não transportes, fazem fantasias, mas não escolas, nem centros de saúde, nem hospitais. A palavra de ordem é uma só: erro. Percebemos.

Essa simbologia do ordeiro, do capaz de permanecer, reproduzir-se, manter-se foi afinal desafiada. O sistema não pode ser baseado em erro sequencial. Pifa.

O ciberespaço comprova. Erros costumam exigir que o sistema se reinicie. O ciberespaço cosmoPOLITIZA o humano. O saber, o discurso, a compreensão, a informação, afinal, saíram da roda Acropolítica, encastelada, de meia dúzia de deuses e deusas. É o período de uma agorapolitica, aberta, nas ruas. E sem agorafobia. 

Estamos engolindo nosso passado, amargo. E digerindo o presente. O futuro, está ali, à nossa frente, pronto para que o devoremos. 




Sobre Marretas e Divãs



"O importante não é o que fazemos de nós, mas o que nós fazemos daquilo que fazem de nós."
JEAN PAUL SARTRE (1905-1980).

Nada o faria melhor que aquela recomendação. Alguns fins de semana no sitiozinho, nada demais. Ainda que abandonado, um amontoado de touceiras de capim, teias de aranhas e construções de alvenaria. Aquilo pertencia a tio Augusto, coisa qualquer de uma fortuna desperdiçada. Mas pertencia de fato, a imagem daquele lugar era uma pintura do velho avarento: quase nada nascia ali, algumas bobeiras feito goiabas e tangerinas, um vazio de construções: a casa com dois quartos, caso alguém resolvesse passar por ali uns dias, o quartinho para o caseiro pôr as coisas só - nem casa para o caseiro havia, o que denunciava uma desconfiança afetada. Enfim, quase tudo ali remetia aos últimos dias daquele velho desconfiado, miúdo em meio àqueles olhos imensos que lhe sulcavam a cara.

O sítio lhe ficara de herança. Mas passar uns dias ali cavucava algo de letárgico, e apertos no coração não poderiam lhe fazer bem. Não que sentisse saudades do velho tio, não, aquele homem ranzinza não conseguiu provocar sentimento algum em quase ninguém durante sua vida. Mas aquele seu fim de solidão e doença certamente eram visíveis naquele pedaço de terra solitário e doente.

Daí que Raul Gonçalves, o doutor Raul Gonçalves, em atendimento a seu terapeuta, resolveu fazer daquela herança aquilo que nunca havia sido: razão de encontros com a família, com os amigos e, principalmente, razão de fuga daquela sua rotina forense. Claro, ia ser urgente colocar uma piscininha, fazer uma churrasqueira, ampliar a casa, contratar um caseiro, dar um jeito no jardim, plantar uma horta, enfim, coisas que conferissem àquele lugar uns quês de simpatia, aconchego e não mais um pedaço de acidez humana. Ah, os homens, se soubessem que a vida cabe em nesguinhas de momentos, em caixas do tamanho das de fósforos com coisas boas, talvez aprendessem a guardar essas caixas quando precisassem, e não sair por aí queimando todos os palitos como se precisassem de luz a toda hora. Falando em fósforos, uma churrasqueira de tijolos ia cair muito bem naquele canto perto daquele coqueiro torto. Mas nada disso, antes era preciso ampliar a casa, talvez demolir uma parede e puxar mais uns cômodos- coisa de três ou quatro- para receber bem as pessoas.

Num dia meio nublado, Tião, um homem seco, meio sisudo e indicado pela empregada do doutor Raul para a tarefa apareceu no sítio para o malfadado "puxadinho". Foi lá para quebrar umas paredes, nada mais, bobagens de começo de obra. Mas era o começo da obra. Doutor Raul, vendo aquele homem esgalhado em braços que mal davam conta de si mesmos, quiçá erguer a marreta para a demolição da parede, resolveu puxar assunto:

- Vai ser difícil aí, hã? Essa parede é velha, mas a construção é bem sólida....

E o pedreiro, com os olhos meio imundos de pó e retorcidos em direção ao advogado de meia idade:

-Quê isso, dotô. Isso aqui desde pequeno eu faço, ajudava meu pai a fazer laje, e de vez em quando derrubava umas parede também. Sabe como é, criança com marreta não dá muito certo. Mas fui pegando o jeito, hoje tô craque nisso aqui.

- Bom, só espero que o serviço fique bem feito. Maria me falou que o senhor faz bem as obras, e não cobra caro...

-Ah, seu dotô, sabe como é né, pedreiro não tem que cobrar caro não, não estudei feito o senhor pra fazer o que faço, faço apenas porque dá para criar os minino. Mas gosto de todo jeito.

- Que bom, então. É isso que vale, né não? Quero ver essa casa cheia, pra passar bons momentos com as meninas, sabe? Tenho duas filhas, a Claudinha e a Renata, uma de seis e a outra de nove. A Thaís, minha mulher, às vezes reclama que as meninas dão muito trabalho, que têm de levá-las à escola, inglês, e tudo o mais. Mas elas ficam muito presas dentro de casa, sabe? Um pouco de ar puro faz bem.

- É...

- Mas não sei. Minha mulher vive enterrada em terapeuta, ela diz que precisa desabafar aquilo que sente, para se ajudar. Ela fala que está sobrecarregada, que o chefe cobra demais, que as colegas todas são assim e assado e estressada com as coisas dela. Trabalha com design, sabe?

-Sei não, dotô.

- Coisa de desenho, entende? Aí, depois de a Thaís insistir demais na idéia, resolvi um dia ir ao tal do terapeuta também, porque ela me falou que só podemos crescer juntos, enquanto casal... Fui e ele me recomendou fazer terapia individual, pois juntos eu e ela não estávamos progredindo muito...Aí ele me falou que havia uma falta de foco, de objetivo de nós ambos, para crescermos juntos, e que o desgaste do trabalho estava afetando nossa vida em família. Acabei concordando, e realmente percebi que estava estressado. Daí, resolvi reativar esse sítio aqui, herança de família, pra ver se dou uma relaxada, sabe?

-Sei como é, dotô...

Nesse simples "sei como é", qualquer coisa podia significar, menos simples. Aquele falatório parecia distante de um homem que se resumia a três casamentos, algumas bebedeiras, sete filhos e trezentos e poucos reais no fim de algumas obras. Talvez lhe faltasse cabeça de advogado, talvez os três anos no primário haviam esvaziado qualquer conversa com palavras feito "terapeuta", "design" e "estresse", ou talvez aquele sol mormaçado, em meio às nuvens, estivesse lhe cozinhando as idéias.

Abanou uns mosquitos, resmungou que precisava voltar ao serviço, e assim se esgueirou daquilo. Nunca lhe haviam dito que tivesse "estresse". Nem sabia o que era isso. Ao menos, lhe restava a marreta.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Actus regit tempum

Vivemos uma época de inversoes. Nao me tomem por conservador, nao é nada disso. "Inverter "deixou os lábios de velhos monarquistas, ufanistas, machistas ou bajuladores da moral, da ditadura e dos bons costumes, para estar aqui, nestas linhas. Verter tem toda uma fluidez, e inverter, por consequencia. Já dizia o Bauman, a modernidade é líquida, tudo é volátil, da família ao carro, do amor ao ódio. Este período que relato, nao sei quanto tem de semelhante às épocas que se foram. Claro, algum entendido, experiente, dirá que certas coisas existem desde que o mundo é mundo, e se o entendido for conservador como o velho ufanista das primeiras linhas, dirá que nada há que possa fazer para mudar tal condicao. Mentira! Se há um aspecto que posso gabar é essa condicao de humano. Que olhou para isso de natureza, essa montoeira de recursos, e comecou a inventar necessidades, e também problemas, estes últimos que resultavam de necessidades/desejos nao atendidos. A relacao economicista de escassez de recursos é real, e de resto, as necessidades que se objetivam para além da materialidade, acabam sendo em muito resultado da organizacao desses recursos, sua distribuicao, producao e circulacao. "Amor", por exemplo, para além de sentimentozinho ambientado, circunstanciado, musicado, jantarzinhado, hormonizado, viagenzado, é pouco, mas é muito. Gabar da condicao humana é sensato porque, diante desses desafios, pode propor inversoes. Amor nao é um só, mas sao vários, família passa a ter muitas facetas, conhecimento torna-se um pedaco sem chao na velocidade de máquinas, redes e informacoes.

Nao sei ao certo porque cheguei neste ponto. Minha intencao, ao iniciar este pequeno texto, era de falar como que cifras tao altas (e ao mesmo tempo tao instáveis, diante de extermínios fatalistas e inchacos de problemas) podem banalizar tanto a acao humana. A frase, título do texto é uma inversao. Uma daquelas latinices que aprendi no curso de Direito. "Tempus regit actum", diziam já os antigos, para que a lei nao retroagisse e punisse ilícitos que, à época que foram cometidos, nao o eram. A inversao é proposital, como qualquer inversao. A forca dos homens está nisso, a capacidade de inverter (ou subverter) condicoes. Inverti a frase (trocando o sujeito pelo objeto, e espero, com a devida declinacao que aprendi nas aulas de latim que tive) porque quis, e também porque é o que observo: seres invertidos por sua própria acao.

Os atos passaram a reger o tempo. Tempo, isso sempre me incomodou, um conceito puro, decisivo sobre a relacao que temos uns com os outros: isto é passado, isto é ruim, isto já era, isto eu espero, isto nós confiamos que será assim, isto é agora, istó já nao é de hoje... Uma série infinita de necessidades colocadas em relacao com o tal tempo. Pois bem, que tempo é esse, conceito puro, apriorístico, que cada dia se vê mais e mais liquefeito? As pessoas nao o tem. Nao há tempo para os homens, se a acao deles é uma só: a de se mover agindo na esteira produtiva, a de fazer para poder ter, para ter, para que mais facam, e mais possam querer e ter...O tempo se torna, afinal, uma grande engrenagem de acoes, que se medem, se organizam, e infelizmente, nada ou quase nada transformam. Claro que transformam o espaco numa cadeia de utilizacao de recursos e invencoes mirabolantes para que novos recursos sejam utilizados...Mas essa transformacao, por si só, é frágil, se sustenta numa esperanca de equilíbrio, que jamais virá (nao há recursos suficientes para o grandioso desejo de autodeterminacao por bens), o que provoca iniquidades, desigualdades sem fim, divisoes e ódios irascíveis mesmo nas mais pacíficas sociedades. A transformacao fica fragilizada pelo que oferece: nao é possível garantir que os detentores de recursos eternamente comprem, produzam e mais queiram, e que setores desses recursos possam ganhar com especulacoes infinitamente...Nao há espaco para isso, nem tempo. O homem rasgado pelo seu tempo médio, ao mesmo tempo excessivo na terra, é jogado à margem de sua condicao pelo conceito de "utilidade". O trabalho que é útil, afinal, para a vida sem tempo, é aquele que o mantém sem tempo, na ordem da esteira, maquinizado, na vida sem tempo. Quando há tempo para alguns, nao se é mais útil.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Dívida pública para o público



A dívida pública elevada é ruim pra qualquer governo, seja ele orientado pelos meandros de terceira via, de neoliberaloide ou do que quer que seja. Por um simples motivo: a dívida pública onera a população como um todo, especialmente as gerações futuras: toda dívida vence, toda dívida (ou quase isso) deve ser quitada, é princípio básico de direito e da economia. Pois bem, e onera em dois sentidos: um positivo, que significa aumento futuro de tributos, outro, negativo, através de enxugamentos orçamentários com gastos sociais, desenvolvimento de políticas públicas, etc.

A curto prazo, pensando em soluções para o desenvolvimento de economias estagnadas, talvez o endividamento público possa parecer a melhor solução: foi o que vivenciamos aqui na américa latina especialmente no século passado né? Criar condições para o desenvolvimento, para que se possa falar em investimento, geração de poupança nacional, equilíbrio fiscal, maior crescimento econômico futuro e etceteras. 

E vamos combinar, fundos de reserva existem, a crise de 2008 prova isso: há crédito a ser concedido, seja para bancos ("salvos" em operações milagrosas), seja para governos. Estes segundos, no entanto, costumam ser péssimos pagadores, sujeitos aos refluxos de suas economias e das economias do resto do mundo (pois é impossível se pensar apenas em mercados produtivos e de consumo dentro das fronteiras nacionais), às mudanças de governo e de orientações econômicas,...

Enfim, penso que é o velho problema desse "paradigma" (com o perdão da palavra) de modo de produção capitalista que enfrentamos: o Estado deve ser forte, o que não significa um Estado grande. Forte o bastante para intervir nos momentos de crise, mas não só, garantir o investimento, e o desenvolvimento, a organização da sociedade civil, a livre-iniciativa, etc.

A Uniao Europeia tem adotado políticas ortodoxas de ajuste orçamentário, por conta de um cenário já desanimador...Resumindo, está pensando em custos não só presentes, mas também futuros, de possíveis dependências externas e endividamentos. O problema é saber até que ponto isso se justifica, com níveis de desemprego na casa das dezenas percentuais.

Que decisao, com relacao ao endividamento nacional, tomará o povo da Espanha? Pelo visto, com o enfraquecimento do PSOE e o fortalecimento do PP espanhol, o cenário é um tanto voltado à ortodoxia neoliberal. Veremos...

 

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Educacao revolucionária para quem, cara pálida?

A sociedade da informacao como a propulsora de (outras) velozes transformacoes do capitalismo. As linhas fordistas, a producao em série, os milhoes e milhoes de bens a serem consumidos e produzidos, já sabiam muitos, seriam quase todos feitos por máquinas. Nao se trata de ajustes apenas adequados às necessidades crescentes, porque aqui nao se trata de pensar as relacoes de mercado como a teoria de Malthus sobre crescimento populacional e demanda de alimentos em proporcoes geométricas, e producao dos mesmos em proporcao aritmética. Isso é pouco, o século XXI demonstra que crescemos cada vez menos, e estamos cada vez mais diante de problemas já gigantescos. Trata-se de eleger um modelo dos criadores, inventores, descobridores. Pois estes inventarao novas tecnologias, suplantarao modelos para o consumo e assim deixarao que as máquinas trabalhem com a producao mecânica, fordista, com as esteiras. Até o dia em que a inteligência artificial provoque uma ruptura dessa relacao de subordinacao entre máquinas e homens.

Terrorismo digital à parte, a revolucao pela via educacional parece ser uma bandeira muito bonita, comprada por um amplo espectro político, das extremas esquerda e direita, até os adeptos de terceiras vias, liberalismos e conservadorismos. Fato é: a "revolucao" pela educacao, enquanto política pública, assumiu a forma mais desejável ao capitalismo que substitui o braco pelos cérebros, o suor por dedos irriquietos que digitam, escrevem, calculam. Somente uma populacao devidamente instruída, e nao somente instruída como o modelo liberal de educacao fez exigir - o amplo acesso ao ensino básico, mas instruída e apta a conduzir aportes, inovacoes, pensar cientificamente. A educacao, enfim, para o desenvolvimento.

Pergunta-se: um modelo que atende à substituicao progressiva de seres humanos por capital humano. Pessoas que pensam, por pessoas que produzem pensamento, que por sua vez materializa-se em produtos novos, solucoes novas, a serem vendidas, comercializadas, liquidificadas na modernidade tardia. Nao se trata aqui de condenar cérebros inventivos. Pelo contrário: devem sim ser estimulados! Nao devem é ser estimulados, contudo, seguindo apenas uma lógica agrilhoante, de cadeias, desenvolvida para a sociedade de consumo. 

É esse o modelo que critico, e que parece ser cada dia mais e mais estimulado: a caca aos estudos universitários, a sanha por diplomas-resultados, a procura irriquieta de homens por sobrevidas que nao se deparam com o estimulante desafio do conhecimento. Acabam contornando-o, vendo-o quando muito de relance. E os gênios, os inventivos, criativos, se perdem e sao evidentemente menorizados, desmerecidos - se comparam aos gênios das Mil e Uma Noites: sao escravos! Nao detentores de lâmpadas, mas escravizados por producoes, por lattes repletos, por produtos finais de pesquisas, esquecendo de um compromisso, anterior a qualquer invento: com a sociedade que o envolve, com o bem-estar dessas pessoas mesmas, com os rumos que classes dirigentes conferem à mesma sociedade. É o mínimo a se esperar. 

Portanto, sempre me pareceu muito clara a necessidade de desenvolver ensinos básico e fundamental nao só estimuladores de conhecimento, mas sobretudo atentos às transformacoes de comunidade em nível local, às integracoes regionais de comunidades, aos desafios e problemas sociais nacionais e também internacionais. É dizer, desenvolver mecanismos de entendimento do que seja cidadania, participacao popular, sociedade civil, governo, instituicoes e direitos. Pedir mais do que pode fazer um professor da rede escolar, já repleto de encargos e ridicularizado com seus breves ganhos? SIM! É exigir um modelo de educacao para além das obviedades que exige as transformacoes da sociedade de informacao. A verdadeira revolucao pela educacao comeca com o desafio de mais horas na escola (e também na universidade), e mais estímulo e fomento nao a cérebros escravizados, mas a cérebros de cidadaos livres e  sobretudo socialmente responsáveis.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Fantasma

Acreditar? Não, não acredito. Porém, as constatações da vida crua urbana me levam a afirmar o contrário. Um fantasma é uma imagem não correspondente à realidade. Uma infinidade de imagens não correspondem à realidade, porque "realidade" acabou se tornando, nos nossos dias, um pretexto de tédio, ordem, logicidade, normalidade. Os processos racionais e os processos industriais tragaram a subjetividade humana. Os que a tais processos não se renderam, acabaram sendo taxados de loucos, desvairados. 

Um fantasma é, na origem do termo, um mostrar, uma aparição. Aparição apagada, como disse, por processos cadenciais, logicizantes. Um fantasma é, portanto, o que tendemos a negar, o que nos torna mais humanos: nossa capacidade de negar, criar vias alternativas, conduzir-nos através do que concebemos como esfera subjetiva. 

Terminal Rodoviário do Tietê. Cinco e dez da tarde. Sem muito mais o que fazer, tendo circuncaminhado pra lá e pra cá, bebido todas as águas posíveis, comido e até mesmo escovado os dentes, resolvi me acomodar em uma cadeirinha qualquer, e abrir minha aquisição mais nova: Sermões, do Padre Vieira. Sabia que não conseguiria ler muito ali, mas passatempo melhor que leitura, acho que não existe. Li algumas páginas, sem perceber muito bem quem estava ao meu redor. Havia umas jovens, comendo e conversando. Continuei a ler. Voltei meu olhar melhor. Eram umas jovens, cabelos lisos, com sacolas de compras e bem vestidas, tomando sorvete. "Ah, coisa nada nova", pensei. Continuei minha leitura, agora estranhando o relativo silêncio. Elas tinham ido embora. Pensei: "ah, enfim, paz". Outra conversa começara. Não pude deixar de não prestar atenção: "Essa situação no Rio de Janeiro está terrível, essas favelas foram tomadas, daqui a pouco vão adentrar com tanques nelas, é terrível, isso tudo é culpa da Dilma, terrorista, você já viu? A bandeira do PT é vermelha, o PT é aliado do Comando Vermelho, sabe o PCC? Pois é. Ela está fazendo isso, vai matar todo mundo e controlar tudo". Era um senhor de meia-idade, conversando com a senhora sentada ao meu lado. Eu apenas balançava a cabeça e ria dessa metralhadora de asneiras. A senhora, já cansada de tanta besteira, voltou-se a mim: "Que está lendo aí, filho?" Disse: "Antônio Vieira, Sermões."

- Ah, ele era baiano, né?

-Na verdade, português. Mas veio pro Brasil e morou na Bahia durante muito tempo. Então é baiano de coração.

-Está vendo, não te disse? 

E foi com essa conversa que ela foi se desconversando com o sujeito, que se despediu. Era uma velha de uns oitenta anos, negra, cabelos todos tomados de brancura e presos com grampos. Um vestido surrado, um tanto maltrapilha, e com uma mala de rodinhas, e sacolas atadas por todos os cantos. Carregava uma sacola de feira também. Cara no entanto atenta, uma expressão cambiante, entre severidade e serenidade.

-Sou espírita sabe meu filho? Minha avó era francesa, meu pai, africano. A África, tem caldeirão lá, magia negra. Nasci na Bahia, mas vim cedo pro sul. Aprendi e estudei muito, equações e termodinâmica. 

-Ah sim.

- Sabe o que é um ovo de Colombo?

-Sei sim, é um ovo que pára em pé. 

-E sabe como fazer isso?

- Não. 

-Ah, mas você tem de perceber que existem vários tipos de ovos, né. De galinha, de pato, de codorna...Só te digo isso..

-Hum...

-Sabe, meu filho, essas mulheres brancas aí, são todas filhas, frutos do tráfico de drogas.Metidas com drogas, que financiam essas roupas e compras. E sabe o que mais? Essas criancinhas aí, todas mascando chiclete, é tudo maconha, eles poem no chiclete delas para as viciarem desde cedo, mascando e mascando. Aliás, esse senhor que estava conversando comigo, traficante. Ainda bem que não acreditei em nada do que ele me disse. 

Respirei aliviado e comecei a depositar mais confianca na conversa. Não que fosse esperar lógica ou sentido nela, mas iria continuar a me distrair um bocado...Falou de plasma sangüíneo, de mulheres na política, de Margareth Thatcher, de Dilma Rousseff, e de outras coisas. Disse que quando chegava seis horas ali em São Paulo, Iansã vinha devagar, mansa, ocupando todo o espaço da rodoviária, numa imensidão gelada. Durante a conversa eu batia cadenciadamente minha mão esquerda numa mesinha lateral. Ela me repreendeu e advertiu, com aqueles olhos azuis arregalados, que eu não devia fazer aquilo, que chamava Exu. Tentei quebrar aquela situação, que ficou um pouco desconfortável:

-E de onde a senhora vem?

-Sou de todos os lugares e de lugar nenhum. Vou ao Rio de Janeiro, pego meu onibus às seis e meia, tenho uma missão por lá. Viajo sempre pelo Brasil, sabe filho, mas nunca saio das rodoviárias. Tem muita energia ruim por aí, sabe? 

Ao longo da conversa, retirava de suas sacolas mais sacolas, e de dentro delas outras sacolas, e papéis embrulhados. E de dentro dos papéis, mais papéis. E um garfo de plástico. Até que retirou mais papéis e um papelzinho amassado, em especial. Era uma nota de dois reais. Havia então parado de procurar. E continuou. 

-A Igreja Universal me persegue, sei disso. Minha filha morreu por conta do tráfico. Fora esse perigos, acho que tem outros também, sabe, filho? Aqui em São Paulo, tem muito preconceito contra gente como eu. Contra preto, contra pobre, contra nordestinos. Há pessoas que me desrespeitam muito, essas brancas mulheres de traficantes. Ficam na fila, demoram dentro do banheiro, falando no celular, e nao me deixam usar o banheiro, aí eu mijo na roupa mesmo. Por isso às vezes fico fedendo.

Nessa parte da conversa, ela já falava rompida comigo, sabia que meu ônibus sairía logo, seu discurso voltava a si mesma, com um ritmo que somente ela acompanhava. Foi arrumando todas as sacolas, amarrando-as todas, embrulhando os desembrulhos. Levantou-se de pronto, arregaçou seu braço em minha direção, acenou e sorriu. O sorriso familiar, que permeou toda a conversa. Ainda hoje não descobri de onde tamanha familiaridade. Sorriu largamente, e se foi, sumindo na multidão. Eram seis horas em ponto. Rodei todo o terminal depois disso, até a hora de partida de meu ônibus. Não a encontrei mais.

sábado, 1 de janeiro de 2011

E deste lado, sentado, com as esperanças quase sem caber em mim. Acho que foi a grande lição que tenho tido nesta vida: jamais perdê-la, a esperança. Soa um pouco idiota esses balanços de passagens de ano, mas posso dizer com algum conforto que foi um ano de aprendizado. Aprendi a não me tornar escravo do que sinto, a não esperar acao daquelas pessoas de quem algum dia acreditei que sairía qualquer gesto direto, rápido, certeiro como uma pancada de confianca, reciprocidade, vontade.

As pessoas se resvalam em seus fluxos de continuidade, imprecisao. Se afogam em seus compromissos. Por vezes esquecem de ser o que mostravam ser antes de mergulharem num mundo de ilusoes, abracadas a memórias perdidas, a presentes perdulários, e quase nunca a futuros de esperancas.

É dele que falo! O presente é realmente um presente. É somente o que temos. O que se foi está lá, perdido, entre um canto e outro de apego, de memória, uma reconstituicao. É passado, particípio. O futuro só é esperanca, pois ninguém tem bolas de cristal, e causalidade nao é obviamente lei universal num mundo de caos. 

Resta a qualquer pessoa seu presente, e diante de insatisfacoes, a esperanca. 

E no primeiro de janeiro de 2011, refiz meu compromisso com minha esperanca. E vi a primeira mulher tomar posse no cargo de presidente do Brasil. 

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Acréscimo



Crescia, sem medo. Inerme, a correr naquela vastidão, com seus pezinhos afoitos e serelepes. Produzia buracos resvalados, pequenas tocas onde faria caber cada sentimentozinho seu. Não sem puxões de orelha de seu tutor: "-Abigail, você quer pegar bicho de pé? Amarelão?" Recontava cada episódio da infortúnia preguiçosa de Jeca Tatu, com ar de repreensão, mas ao mesmo tempo com seus olhos molengos, empapados sob aquela bolsa gorda e pintinhas ao redor. 

Abigail se sentia assim, feito Jeca. Sempre que comia aquele prato de arroz e feijão e se deparava com a enorme vastidão de luz que acachapava a cabeça dos peões. Era muito sol, e quente. Amolengava-se cantando samba lelê. Pena lhe era que esse mesmo sol não esquentava as bóias-frias. Ao menos seu prato permanecia quente, graças ao formidável fogão de lenha que Seu Valfrido mandara construir no anexo da usina. Não que isso lhe tornasse um homem melhor, ou de coração mais macio. Antes pelo contrário. Trazer Padre Tadeu fora apenas uma expiação de culpa, dessas que afligem corações perversos. Queria, antes de controlar peões com sermões do padre sobre a bondade do cultivo e do senhor, encontrar ali no seu complexo universo um confessor, alguém para quem pudesse dizer todas as maldades que inventara. 

Claro que Abigail já havia feito a pergunta a Tadeu. Mesmo tendo crescido sem ter visto de perto o que poderia ser uma vida doméstica, familiar, quotidiana. Via meninos e meninas que chegavam junto dos volantes, a chamar de "mainha" e "paim" algumas almas obinubiladas pelo facão e fogo. Foi quando conheceu  Junim. 

Surpresa ou não, foi a primeira pessoa por quem guardou um afeto. Mal havia completado seus dez anos, mal sabia que emblemas revestiam os problemas da vida extra-canavial. Mal sabia que seu apego era o início da broca que atua no interior de si, perfura, deixa rasgos que nunca se fecham. Não que fosse paixão, pois nada havia ali além das meninices. Mas havia algo muito diferente do que tinha por Padre Tadeu, ou pelo que poderia perceber de sua experiência com Pitoco, seu primeiro cãozinho de estimação, ou por Dona Maria, cozinheira que fazia o feijão tão jeca-tatuzante. Era um apego de inércia, sabia que aquilo não acabaria, se acabasse seria o fim. Foi aí que esboçavam cavaleiros e armaduras, brincavam de pique-esconde em labirintos nem tão criativos assim, apedrejavam calangos, brincavam de atrapalhado mãe da rua entre si mesmos. Junim lhe contara sobre sua vida na zona rural de Ibaiúna, sobre seu pai e sua mãe. Foi o primeiro contato que Abigal teria com essa realidade.