"O importante não é o que fazemos de nós, mas o que nós fazemos daquilo que fazem de nós."
JEAN PAUL SARTRE (1905-1980).
Nada o faria melhor que aquela recomendação. Alguns fins de semana no sitiozinho, nada demais. Ainda que abandonado, um amontoado de touceiras de capim, teias de aranhas e construções de alvenaria. Aquilo pertencia a tio Augusto, coisa qualquer de uma fortuna desperdiçada. Mas pertencia de fato, a imagem daquele lugar era uma pintura do velho avarento: quase nada nascia ali, algumas bobeiras feito goiabas e tangerinas, um vazio de construções: a casa com dois quartos, caso alguém resolvesse passar por ali uns dias, o quartinho para o caseiro pôr as coisas só - nem casa para o caseiro havia, o que denunciava uma desconfiança afetada. Enfim, quase tudo ali remetia aos últimos dias daquele velho desconfiado, miúdo em meio àqueles olhos imensos que lhe sulcavam a cara.
O sítio lhe ficara de herança. Mas passar uns dias ali cavucava algo de letárgico, e apertos no coração não poderiam lhe fazer bem. Não que sentisse saudades do velho tio, não, aquele homem ranzinza não conseguiu provocar sentimento algum em quase ninguém durante sua vida. Mas aquele seu fim de solidão e doença certamente eram visíveis naquele pedaço de terra solitário e doente.
Daí que Raul Gonçalves, o doutor Raul Gonçalves, em atendimento a seu terapeuta, resolveu fazer daquela herança aquilo que nunca havia sido: razão de encontros com a família, com os amigos e, principalmente, razão de fuga daquela sua rotina forense. Claro, ia ser urgente colocar uma piscininha, fazer uma churrasqueira, ampliar a casa, contratar um caseiro, dar um jeito no jardim, plantar uma horta, enfim, coisas que conferissem àquele lugar uns quês de simpatia, aconchego e não mais um pedaço de acidez humana. Ah, os homens, se soubessem que a vida cabe em nesguinhas de momentos, em caixas do tamanho das de fósforos com coisas boas, talvez aprendessem a guardar essas caixas quando precisassem, e não sair por aí queimando todos os palitos como se precisassem de luz a toda hora. Falando em fósforos, uma churrasqueira de tijolos ia cair muito bem naquele canto perto daquele coqueiro torto. Mas nada disso, antes era preciso ampliar a casa, talvez demolir uma parede e puxar mais uns cômodos- coisa de três ou quatro- para receber bem as pessoas.
Num dia meio nublado, Tião, um homem seco, meio sisudo e indicado pela empregada do doutor Raul para a tarefa apareceu no sítio para o malfadado "puxadinho". Foi lá para quebrar umas paredes, nada mais, bobagens de começo de obra. Mas era o começo da obra. Doutor Raul, vendo aquele homem esgalhado em braços que mal davam conta de si mesmos, quiçá erguer a marreta para a demolição da parede, resolveu puxar assunto:
- Vai ser difícil aí, hã? Essa parede é velha, mas a construção é bem sólida....
E o pedreiro, com os olhos meio imundos de pó e retorcidos em direção ao advogado de meia idade:
-Quê isso, dotô. Isso aqui desde pequeno eu faço, ajudava meu pai a fazer laje, e de vez em quando derrubava umas parede também. Sabe como é, criança com marreta não dá muito certo. Mas fui pegando o jeito, hoje tô craque nisso aqui.
- Bom, só espero que o serviço fique bem feito. Maria me falou que o senhor faz bem as obras, e não cobra caro...
-Ah, seu dotô, sabe como é né, pedreiro não tem que cobrar caro não, não estudei feito o senhor pra fazer o que faço, faço apenas porque dá para criar os minino. Mas gosto de todo jeito.
- Que bom, então. É isso que vale, né não? Quero ver essa casa cheia, pra passar bons momentos com as meninas, sabe? Tenho duas filhas, a Claudinha e a Renata, uma de seis e a outra de nove. A Thaís, minha mulher, às vezes reclama que as meninas dão muito trabalho, que têm de levá-las à escola, inglês, e tudo o mais. Mas elas ficam muito presas dentro de casa, sabe? Um pouco de ar puro faz bem.
- É...
- Mas não sei. Minha mulher vive enterrada em terapeuta, ela diz que precisa desabafar aquilo que sente, para se ajudar. Ela fala que está sobrecarregada, que o chefe cobra demais, que as colegas todas são assim e assado e estressada com as coisas dela. Trabalha com design, sabe?
-Sei não, dotô.
- Coisa de desenho, entende? Aí, depois de a Thaís insistir demais na idéia, resolvi um dia ir ao tal do terapeuta também, porque ela me falou que só podemos crescer juntos, enquanto casal... Fui e ele me recomendou fazer terapia individual, pois juntos eu e ela não estávamos progredindo muito...Aí ele me falou que havia uma falta de foco, de objetivo de nós ambos, para crescermos juntos, e que o desgaste do trabalho estava afetando nossa vida em família. Acabei concordando, e realmente percebi que estava estressado. Daí, resolvi reativar esse sítio aqui, herança de família, pra ver se dou uma relaxada, sabe?
-Sei como é, dotô...
Nesse simples "sei como é", qualquer coisa podia significar, menos simples. Aquele falatório parecia distante de um homem que se resumia a três casamentos, algumas bebedeiras, sete filhos e trezentos e poucos reais no fim de algumas obras. Talvez lhe faltasse cabeça de advogado, talvez os três anos no primário haviam esvaziado qualquer conversa com palavras feito "terapeuta", "design" e "estresse", ou talvez aquele sol mormaçado, em meio às nuvens, estivesse lhe cozinhando as idéias.
Abanou uns mosquitos, resmungou que precisava voltar ao serviço, e assim se esgueirou daquilo. Nunca lhe haviam dito que tivesse "estresse". Nem sabia o que era isso. Ao menos, lhe restava a marreta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário