Recebi dia desses um e-mail, essas bombas sensacionalistas que deseducam as pessoas, despertam algumas curiosidades, movem crenças tolas. Vulgo: hoax.
Basicamente, o texto ressaltava toda a coincidência entre a região da Mesopotâmia e as inúmeras passagens bíblicas que aconteceram na região, dando a entender que se trataria de uma terra abençoada, santa, escolhida por Javé para seus feitos gloriosos e suas fúrias típicas do velho testamento, sem contudo aprofundar uma análise historicamente mais bem situada. O texto termina com uma pérola profética, como veremos a seguir.
Basicamente, o que diz o e-mail:
1. Que o Jardim do Éden se localizava no Iraque. Bem, é uma especulação elaborada por teorias contemporâneas. Não é possível ter plena certeza dessa afirmação, mas o arqueólogo Juris Zarins afirma que sim, coincidindo imagens de satélites com descrições sobre os rios que formariam a região. O rio Gihon seria o rio Karun, no Irã, e o rio Pishon seria o sistema hídrico de Wadi Batin, que desceria até o golfo pérsico, próximo à estreita faixa litorânea do atual Iraque, região conhecida pela fertilidade de seus solos.
2. Mesopotâmia, onde agora é o Iraque, foi o berço da civilização. Bem, o berço de várias civilizações, pois a "civilização" é um conceito amplo, e seres humanos trabalhando e se organizando socialmente já existiam milênios antes do nascimento de Cristo, em vários pontos do globo terrestre. A Região entre os rios Tigre e Eufrates abarcou um número gigantesco de impérios e civilizações, de assírios, acádios, sumérios, aquemênidas, hititas. Civilizações conhecidas por seus complexos sistemas religiosos, legais, por suas técnicas de plantio e irrigação, pelas táticas de guerra, por cidades, zigurates e palácios.
(E outros simbolismos mais: origem dos Reis Magos, Baltazar, Nabucodonosor levando os cativos hebreus ao Iraque, Daniel na cova dos Leões, etc.)
Muito bem.
fa-in taabuu wa-aqaamuu alshshalaata waaatawuu alzzakaata fa-ikhwaanukum fii alddiini wanufashshilu al-aayaati liqawmin ya'lamuuna
3. Noé construiu a arca no Iraque. Sim, as origens de um dos povos que ocupou futuramente a região de Israel, os cananeus, estão profundamente entrelaçadas com o Iraque. O Pentateuco (5 primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteromônio, que compõem a Torá hebraica) foi escrito não anteriormente ao século X a.C. Vejam que cananita vem de Canaã, por sua vez filho de Cam, que por sua vez foi filho de Noé. Cam foi um patriarca importante, nos relatos bíblicos de povoamento da região que hoje corresponde ao Iraque, Síria, Líbano e mesmo a Israel. Não custa lembrar: o dilúvio não é um relato original ou único na Bíblia cristã, ele está presente nos relatos de Atrahasis e de Gilgamesh da civilização acadiana, que coincidem com o período histórico de algo em torno de 2000 anos antes de Cristo. Estamos falando de uma região sujeita a cheias e vazões dos rios Tigre e Eufrates com frequência.
4. A Torre de Babel ficava no Iraque. Sim. Vejamos a passagem bíblica do Gênesis: "Ora toda a terra tinha uma só linguagem e um só modo de falar. Viajando os homens para o Oriente, acharam uma planície na terra de Sinear (Suméria); e ali habitaram." A necessidade de se fixar em um local propício ao plantio foi uma constante na região do Oriente Médio. Os povos que migraram muito provavelmente não falavam a mesma língua que a da civilização que ali já habitava, séculos antes. Lembremo-nos que a civilização babilônica foi conhecida por seus templos e zigurates enormes, dedicados às divindades a que prestavam culto (Marduk, Ishtar, Adad, e outros). Babel, em acadiano, de bab-ilu, significa "porta de deus".
5. Abraão era de Ur, que ficava no sul do Iraque. Sim, o relato bíblico menciona claramente a cidade de Ur. Ur é uma das cidades mais antigas da história da região, e abrigava os caldeus. Abraão é o pai das religiões monoteístas, tendo revelado sua aliança com Deus por meio de sacrifícios (algo que restou da tradição politeísta então vigente, oferecer animais em sacrifício dos deuses). Abrãao teria vivido, segundo estudiosos, entre os séculos XVIII e XIX antes de Cristo, e é considerado o pai das três grandes religiões monoteístas, em razão de sua aliança com o Deus único: o islamismo (seu filho Ishma-el, Ismael, teria dado origem ao povo árabe), o judaísmo e o cristianismo.
6. A esposa de Isaac, Rebeca, era de Nahor, que ficava no Iraque. Legal, fera. Se Isaac era filho de Abraão, um "iraquiano", nada mais natural que tivesse uma esposa de origens semelhantes, e que houvesse mais gente originária dessa região, migrando e andando por Canaã, certo?
7. Jacó encontrou-se com Raquel no Iraque. Raquel viveu no período da primeira destruição do templo de Jerusalém pelos babilônicos. Jeremias relata que essa mulher teria chorado, pela dispersão de seu povo. Ora, as andanças dessas pessoas pelo Oriente não surpreende ninguém, mais uma vez.
8. Jonas rezou em Nínive, que ficava no Iraque. Sim, Nínive era a capital do Império Assírio. Jonas foi um enviado de Deus, segundo os relatos bíblicos, para avisar: aos Assírios que se arrependessem do derramamento de sangue que praticavam. O Império Assírio ficou conhecido por suas táticas de guerra poderosas, e pela dominação de vários povos na região, tendo inclusive dominado a região da Palestina. Uma guerra de forças entre uma civilização pequena e espremida, a dos hebreus, que afirmava sua força como "eleita por Deus", diante da força dos exércitos da região.
9. A Assíria, que ficava no Iraque, conquistou as dez tribos de Israel. e 10. Babilônia, que ficava no Iraque, destruiu Jerusalém. Sim, afinal, impérios organizados, fortes e complexos, baseados na guerra, sobrepuseram-se a uma região ainda em formação, tribal, e disputada por outros povos. Tratam-se dos dois cativeiros do povo hebreu: o assírio e o babilônico. Nabucodonosor II, rei da Babilônia, que libertou o reino Assírio do jugo de Nínive, expandiu os domínios até o Egito e a Síria, e dominou inclusive a Palestina. Uma série de judeus foram então deportados de sua região, o antigo reino de Judá; trata-se da primeira destruição do templo em Jerusalém e primeiro grande êxodo do "povo escolhido". A dominação babilônica tem grande papel simbólico na descrição bíblica: Babilônia é sinônimo de confusão, pecado e luxúria. Essa visão retrata o que possivelmente representou a dominação agressiva, violenta, dos povos de Judá, quando cativos na região do atual Iraque, dando origem aos relatos dos profetas Jeremias, Ezequiel e Daniel do velho Testamento.
Muito bem.
O tal e-mail abrilhanta-se ao fim, ao dizer que o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, revelado a Maomé por Deus, conteria a seguinte frase, em 9:11:
"....aquele descrito como o filho da Arábia será acuado por uma águia amedrontadora.As garras da águia serão sentidas por todas as terras de Allah e Lot, quando algum dos povos tremerão no desespero e no júbilo. Quando as garras limparem as terras de Allah, haverá paz."
Nada mais falso. Pegaram o tal 9:11 para uma associação mística com o 9/11, como escrevem os estadunidenses a data de 11 de setembro.
Vejamos o que de fato diz a Surata 9, versículo 11 do Corão:
fa-in taabuu wa-aqaamuu alshshalaata waaatawuu alzzakaata fa-ikhwaanukum fii alddiini wanufashshilu al-aayaati liqawmin ya'lamuuna
9.11 . "Mas, se se arrependerem, observarem a oração e pagarem o zakat, então serão vossos irmãos na religião, combatei os chefes incrédulos, pois são perjuros; talvez se refreiem."
A Surata (assim é o nome dos capítulos da escritura sagrada do Islã) número 9, versículo 11, não faz nenhuma referência à águia. Não há qualquer referência à águia em todo o Alcorão. Nem há, ao longo de todo o texto, qualquer menção a "Arábia". Essa noção geográfica não existia à época, as terras onde o Islã se expandiu se dividiam conforme suas origens e povos que nelas viviam.
O Zakat é um tributo religioso, é um dos pilares da fé islâmica. Como se fosse um dízimo, só que obrigatório para essa religião.
Então não há nenhuma profecia quanto ao 11 de setembro, nem à guerra contra o Iraque, nem à suposta Paz promovida pela guerra na região, no texto do Corão.
O texto é cretino, pois afirma que a própria escritura sagrada do Islã teria previsto que a paz no Oriente Médio se daria no dia em que a Águia (símbolo dos Estados Unidos da América) impusesse seu medo às terras da "Arábia". Sinceramente...
Aliás, sabemos bem que 11 de setembro e Guerra do Iraque foram relacionados de forma tosca e sádica pelo serviço de inteligência norte-americano, que batizou metade do Oriente Médio como "Eixo do Mal". Surrealismo efetivo, que descambou nessa guerra estúpida que vimos acontecer há mais de dez anos.
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