"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O outono brasileiro: antropofagia do futuro



Este texto foi escrito em meados de julho de 2013. 

Um mal-estar aparente

Tentarei neste texto domar o presente, encerrá-lo em palavras, dividir a realidade em fragmentos, com o evidente risco de não dar conta de expressar toda a complexidade do que acontece no Brasil neste meado de 2013. Nos tempos em que a escrita, da expressão partilhada de uma racionalidade comunicativa se encontra cada vez mais destituída de sentido, e as tênues linhas das emoções – individuais ou coletivas – expressam com muito maior crueza e vigor a politicidade dos seres humanos.

O mergulho nas compreensões subjetivas é algo extremamente importante em qualquer análise que se faça. A civilização ocidental, essa criação fabulosa que grita, irascível, os preceitos de sua legitimação, e se ensurdece com o mesmo grito, combinou uma receita altamente danosa, que lhe provocou um profundo mal-estar, um estado de enfermidade perigoso: a promessa de que qualquer um pode ser o que quiser, em escolhas e sortes combinadas, com as representações em diferentes níveis, mas sobretudo no político, para as quais a mentira e a ilusão são máximas.

A promessa de que qualquer um pode ser o que quiser, na verdade, é a primeira decepção perante a qual se deparam os seres humanos: a vontade não é o império da realização, pois o futuro promissor, as preocupações em torno do crescimento econômico, que seria capaz de trazer a todos uma vida materialmente próspera, se viu derrapando nas sucessivas crises de produção, nos desníveis do comércio internacional, nas formas de concentração e acumulação de riquezas, e no descompasso entre crescimento demográfico e crescimento efetivo da renda das famílias.

Afinal, nosce te ipsum, conhece-te a ti mesmo, não significa torna-te o que quiseres. Há uma amarra poderosa da existência humana, da livre expressão do humano profundo. Sua razão é objetiva, concreta, material. 

As representações, no papel de direcionarem as ações humanas coletivas, isto é, partilhadas por um senso comum, vão caindo por terra: o que representa uma vida feliz, realizada? Poder pagar por bens de consumo, carros, viagens, casas, ostentar condições superficiais de sentido à vida? O que representa, no nível das decisões coletivas, a vontade das pessoas? Umas centenas de eleitos por meio da manifestação de vontades despida de sentido, tornada obrigação no Brasil, alçados como projetadores de esperanças na promessa de um futuro próspero, que demora a chegar, ou a alguns poucos chega?

A combinação entre as representações que direcionam as vidas humanas, e o fracasso da vontade como definidora do destino provoca, em grande medida, o mal-estar contemporâneo. As promessas do futuro se desfazem, a individualidade grita para se afirmar e perde as batalhas diante da vitória dos constrangimentos, a ocidentalidade escolhe a via tortuosa entre o representativo e o promissor, e se depara com um exército de decepcionados.

Esse processo explica, em parte e de forma genérica, a sensação de insegurança que é tão comum às pessoas, e o estranho sentimento de não entenderem ao certo o direcionamento que dão às suas próprias vidas. De nadarem sempre em benefício e no sentido de uma mesma maré, repleta de altos e baixos, onde também estão nadadores afogados e outros mais habilidosos.

A (re)volta ao Brasil

Este mal-estar não é prerrogativa brasileira. O grande pedaço de América, paraíso abundante de recursos, palco de contradições as mais distintas e experiências as mais diversas, caiu no infortúnio contumaz da vida ocidental: promessas se repetem, a vida coletiva é status de realização em construção – em desenvolvimento. As representações da vida social constituem ilusões, o jogo das farsas políticas, em muitos momentos, deixou esquecido pelos cantos o interesse coletivo, em detrimento dos anseios de grupos que disputavam o poder: empresários, latifundiários, arrebanhadores de almas crentes.

Aqui, a manifestação do excesso só é compreensível pela via antropofágica. Deglutir a cultura que veio, devorá-la por completo, e regurgitar o visceral, que se faz novo. Essa parece ser a promessa constituída por esse vasto continente, aos que insistem em estudá-lo em sua formação idiossincrática. Estudo desnecessário, não estamos em formação, estamos em conteudização. Forma o Brasil já possui, seu conteúdo é que está sendo diariamente inscrito nos processos globais hodiernos de significação social.

Quero dizer, o Brasil, ou a tal "civilização brasileira" está aprofundando aquilo cujo significado, perdido, constituiu o traço fundamental de um rabisco perverso, que separava forma de conteúdo, autor de obra: cidadania. Está, afinal, redescobrindo seu todo, e não apenas exibindo as formas ou rearranjando-as. Está preenchendo-as de conteúdo, historicamente esvaziadas.

Correto. O vaivém de primaveras árabe, movimento dos indignados, ocuppies e outras formas de insatisfação parecia distante, ao mesmo tempo que conectado à solidariedade cibernética deste lado de cá. Aqui vínhamos digerindo aos poucos essas realidades aparentemente distantes, e observando, dia após dia, a sucessão de problemas que ora se acirravam, ora evanesciam, ao sabor das crises, dos ânimos e das disputas institucionais e sociais domésticas. Essa mistura entre o doméstico e o estrangeiro, se durante muito tempo alicerçou as bases de “formação da civilização brasileira”, foi absorvido pelo mal-estar próprio da vida ocidental, nos tempos mais recentes, e combinou-se de forma explosiva para diferentes setores da vida urbana neste país.

A urbe, cidade das promessas

Pois na cidade brasileira, sobretudo na grande cidade brasileira é que as contradições se fizeram evidentes. Pelo menos quinze cidades brasileiras possuem mais de um milhão de habitantes, número bastante significativo, se considerarmos que a região metropolitana de uma delas, precisamente São Paulo, concentra cerca de um décimo da população do país.

E não à toa é em São Paulo que a cidade imensa, de fartas promessas e do acelerado crescimento populacional fruto da também acelerada industrialização, deu início a uma série de protestos e manifestações, que hoje são encarados como desencadeadores do outono brasileiro. O outono que enche ruas de insatisfeitos, em busca de manifestarem o sufocado, extravasar o que ficou jogado aos cantos, esquecido por promessas e desamparado de respostas.

São Paulo, surpresa quente de 2013, porque contrariou expectativas historicamente construídas, de uma sociedade marcada pela pujança econômica alicerçada num espírito faminto de seres que se atribuíam a responsabilidade por sua própria sorte. Livres, bandeirantes, quase predestinados, que viveram o intenso e violento processo de urbanização e industrialização no século passado, construindo uma sociedade na qual surgiram segmentos urbanos avessos à conformação política brasileira, à diversidade regional e que se arroga(va)m, não raro, como os motores e alicerces econômicos do país.

Sua sorte, contudo, foi tão infeliz – ou ainda mais – que a de muitos dos que habitam as grandes cidades brasileiras, onde viver bem parece um projeto longínquo, sem consistir preocupação de mandatários eleitos. Colapsou-se.

O Movimento Passe Livre, com origem no começo deste século XXI, construiu sua pauta a partir da necessidade de apropriação espacial da grande cidade brasileira. Quase sempre essa cidade é constituída de um centro rico e dinâmico, onde se concentram boa parte dos serviços, do comércio, das empresas e dos escritórios, e de uma periferia pobre, populosa e alijada da vida comum nesse espaço urbano. Desamparada de serviços, muitas vezes desatendida de lazer, e jogada ao esquecimento dos serviços públicos e do dinamismo da iniciativa privada. A pauta do transporte na cidade grande, portanto, é a pauta que coloca no centro das atenções esse conjunto de expectativas das pessoas que habitam uma grande cidade, que objetivam não apenas trabalhar no centro da cidade, mas usufruir dela de forma democrática, igual, descentralizada, negando o direito exclusivo de alguns poucos segmentos sociais. Locomover-se livremente na cidade é apropriar-se de seus diferentes espaços, sem os muros habituais que separam centro da periferia.

É na cidade grande brasileira que esses muros são afirmados pela presença ostensiva de forças policiais, que infelizmente ainda pregam um modelo que privilegia suspeitas aparentes em estereótipos, para constituir flagrantes. Flagrantes, revistas, rondas e apreensões, que na maior parte das vezes recaem sobre as regiões periféricas das cidades, habitadas por pretos, pobres, à margem da apropriação de um espaço não diferente do que lhe foi colocado como “seu”. Seu espaço, sua gente, sua diferença, infelizmente distanciada da cidade centro, que pulsa com seus excessos e suas promessas, que um dia trouxeram retirantes e novos moradores que construíram a mesma cidade. O centro tem seu alicerce na diferença com relação à periferia. E na indiferença de quem o habita em relação a quem habita a periferia e vive, quotidianamente, as opressões costumeiras do sistema, que mata diariamente milhares de jovens pretos entre 18 e 25 anos nas grandes cidades brasileiras.

A distância contorce a comunicação. O conflito se oculta aos cantos, se abafa na periferia, se remodela, distante dos olhos centrais. E quando ameaça eclodir, as mesmas forças policiais agem com a resposta repressora, imediata.

A distância precisava ser afirmada ainda mais, entre essas duas cidades brasileiras, quando os grandes eventos se tornaram a pauta prioritária da agenda política recente. Remoções forçadas, desocupação de espaços públicos, ocultação de moradores de ruas, o debate sobre internação compulsória de usuários de crack, um estado de coisas absolutamente ilusório, maquiado, que buscava ocultar as mazelas construídas no espaço urbano, desculpem o uso da expressão, mas muito certeira, “para inglês ver”.

O direito à moradia, sucessivamente negado a parcelas da população pelo poder público, em programas de financiamento fabulosos, para os quais muitas vezes os mais pobres jamais poderiam fazer parte, enquanto empreiteiras valorizavam terrenos e jogavam o perverso jogo da especulação imobiliária, ressaltava ainda mais a distribuição desigual do espaço urbano brasileiro.

Justificadas as bandeiras dos protestos? Sim e não. Razões não faltariam para sair às ruas e gritar, clamar por um outro projeto de cidade. Mas não seriam, ao mesmo tempo, as motivações que levariam outras tantas cifras humanas às ruas. Não há cadeia causal, linear, no processo de ocupação das ruas brasileiras, há, isso sim, uma insatisfação geracional, geração que pouco havia experimentado, com tamanha força, a rua, este fantástico cenário dos indignados.

A cidade é a causa, pois é na cidade que a maior parte do país vive e se desencanta. É na cidade onde sonhos se interrompem e esperanças se alimentam. Mas não é a cidade a causa primeira, e nem a última para o grito do outono. O início da onda de protestos com o movimento passe livre desencadeou, com jovem vigor, um aprendizado importante e indecifrável para quem não estivesse por ali. Afinal, por que tanta repressão? Por se querer ou se lutar por uma sociedade melhor? Por gritar o que se pensa? Por não ter medo de fazê-lo? Por simplesmente ocupar a cidade, na qual a máquina e o motor são soberanos, e ditam a ordem lógica de seu tempo?

A violência da sociedade brasileira, costumeiramente encoberta e adoçada pela cordialidade cultural, demonstrou sua voracidade: acertou em cheio setores médios urbanos, para os quais os dramas habituais de repressão que vivem os habitantes de periferias jamais foram tão evidentes. Essa onda de repressão policialesca encorajou os amedrontados, escondidos no manto de suas opressões diárias, a sair, e gritar. Gritar num movimento crescente, desconcertado, na esperança de ser ouvido, entre os gritos de uma competição internacional de futebol que se anunciavam.

Isto aqui que vivemos não é nem foi nenhuma primavera. É um outono, no qual, em vez de folhas das árvores, espera-se que caiam as máscaras das representações – sobretudo políticas - , que pouco comunicam e, de forma muito débil, representam. E que o inverno não esfrie, sucedâneo, a chama que nos move em direção ao aprofundamento e radicalização desta jovem democracia.

Política e polícia: o simbólico como erro do sistema

Essa se coloca como chave explicativa: a democracia, suas regras de funcionamento e sua cara nada democrática. A democracia brasileira me faz lembrar uma charge do Angeli, esta aí embaixo: é uma festa só para os sócios do club privé:



A relação entre Estado e sociedade civil ainda não foi bem equacionada no Brasil. Mesmo com os avanços das formas de participação da segunda no primeiro, com a composição de conselhos de políticas públicas por movimentos da sociedade civil organizada, com as consultas públicas e audiências, ou ainda, a experiência pioneira de orçamentos participativos, a cidadania democrática e popular sofreu, nos últimos dois anos, uma clivagem importante: a excessiva burocratização das decisões políticas, cada vez mais tomadas e concebidas em gabinetes, e cada vez menos em sintonia com as vozes organizadas da sociedade civil.

Esse fator é algo importante no processo, e precisa ser corretamente avaliado. O espaço concedido aos movimentos sociais na composição dos governos petistas nos últimos anos criou, por um lado, uma importante agenda política para o país e, por outro, uma espécie de acomodação desses mesmos governos: a falsa noção de que as instâncias participativas garantiriam a permanência dessa agenda popular, dos interesses da sociedade civil organizada e de um projeto de país que evitasse o conflito por meio da participação democrática.


Acontece que essa agenda não se permaneceu. E não se permaneceu, ou foi desviada, exatamente pela excessiva burocratização decisória, marcada pelo tecnicismo governativo, pelos impulsos das decisões de gabinete, por um congresso desmoralizado politicamente, no qual a representação política se traduz quase sempre e somente em obtenção de vantagens pessoais, fisiologismo e trocas entre financiadores de campanha polpudos e votações descaradamente óbvias. Escassas são as propostas levadas a sério, apresentadas e elaboradas por congressistas.

O jogo precisa ser jogado, de forma plena, por seus protagonistas. A distância das várias cidades se justifica no uso da força policial, essa máquina fabulosa de arbitrariedades, pré-juízos e estereótipos, tão característicos de sistemas autoritários, em que nenhum argumento minimamente racional é capaz de espancar, sequer levantar um dedo, contra a supremacia da vontade, arbitral, estatal, institucional, estúpida. Esse resquício fabuloso permanece distribuindo bônus aos ganhadores do jogo social, que espelham neste país imenso, de várias cidades imensas, outros imensos abismos entre centro e periferia, entre norte e sul, entre pretos e brancos, entre pobres e ricos, entre Zona Norte e Zona Sul.

Polícia tem um papel simbólico e efetivo,  e a política represent-ativa, idem. Represent-passiva? Tampouco. Pois nem mesmo na passividade de espectador, que vê diante de seus olhos a convulsão incerta, o agarramento do virtual e o ajuntamento real dessa fauna pós-moderna, fervilhante, foram capazes de uma mudança mais aprofundada sobre suas condutas. O jogo real segue nos símbolos de uma ordem violenta. Crua, que transparece como paz democrática. Como estabilidade institucional, como força mágica da vontade. "Confirma" uma tecla verde, cria-se uma fábula. A fábula do desinteresse dos apertadores de teclas, e a fábula do interesse dos conduzidos aos assentos, por uma mágica distinta, mas não menos verde que o botão. Notas verdes e pretas, que fazem estádios, mas não transportes, fazem fantasias, mas não escolas, nem centros de saúde, nem hospitais. A palavra de ordem é uma só: erro. Percebemos.

Essa simbologia do ordeiro, do capaz de permanecer, reproduzir-se, manter-se foi afinal desafiada. O sistema não pode ser baseado em erro sequencial. Pifa.

O ciberespaço comprova. Erros costumam exigir que o sistema se reinicie. O ciberespaço cosmoPOLITIZA o humano. O saber, o discurso, a compreensão, a informação, afinal, saíram da roda Acropolítica, encastelada, de meia dúzia de deuses e deusas. É o período de uma agorapolitica, aberta, nas ruas. E sem agorafobia. 

Estamos engolindo nosso passado, amargo. E digerindo o presente. O futuro, está ali, à nossa frente, pronto para que o devoremos. 




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