"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

sábado, 15 de janeiro de 2011

Fantasma

Acreditar? Não, não acredito. Porém, as constatações da vida crua urbana me levam a afirmar o contrário. Um fantasma é uma imagem não correspondente à realidade. Uma infinidade de imagens não correspondem à realidade, porque "realidade" acabou se tornando, nos nossos dias, um pretexto de tédio, ordem, logicidade, normalidade. Os processos racionais e os processos industriais tragaram a subjetividade humana. Os que a tais processos não se renderam, acabaram sendo taxados de loucos, desvairados. 

Um fantasma é, na origem do termo, um mostrar, uma aparição. Aparição apagada, como disse, por processos cadenciais, logicizantes. Um fantasma é, portanto, o que tendemos a negar, o que nos torna mais humanos: nossa capacidade de negar, criar vias alternativas, conduzir-nos através do que concebemos como esfera subjetiva. 

Terminal Rodoviário do Tietê. Cinco e dez da tarde. Sem muito mais o que fazer, tendo circuncaminhado pra lá e pra cá, bebido todas as águas posíveis, comido e até mesmo escovado os dentes, resolvi me acomodar em uma cadeirinha qualquer, e abrir minha aquisição mais nova: Sermões, do Padre Vieira. Sabia que não conseguiria ler muito ali, mas passatempo melhor que leitura, acho que não existe. Li algumas páginas, sem perceber muito bem quem estava ao meu redor. Havia umas jovens, comendo e conversando. Continuei a ler. Voltei meu olhar melhor. Eram umas jovens, cabelos lisos, com sacolas de compras e bem vestidas, tomando sorvete. "Ah, coisa nada nova", pensei. Continuei minha leitura, agora estranhando o relativo silêncio. Elas tinham ido embora. Pensei: "ah, enfim, paz". Outra conversa começara. Não pude deixar de não prestar atenção: "Essa situação no Rio de Janeiro está terrível, essas favelas foram tomadas, daqui a pouco vão adentrar com tanques nelas, é terrível, isso tudo é culpa da Dilma, terrorista, você já viu? A bandeira do PT é vermelha, o PT é aliado do Comando Vermelho, sabe o PCC? Pois é. Ela está fazendo isso, vai matar todo mundo e controlar tudo". Era um senhor de meia-idade, conversando com a senhora sentada ao meu lado. Eu apenas balançava a cabeça e ria dessa metralhadora de asneiras. A senhora, já cansada de tanta besteira, voltou-se a mim: "Que está lendo aí, filho?" Disse: "Antônio Vieira, Sermões."

- Ah, ele era baiano, né?

-Na verdade, português. Mas veio pro Brasil e morou na Bahia durante muito tempo. Então é baiano de coração.

-Está vendo, não te disse? 

E foi com essa conversa que ela foi se desconversando com o sujeito, que se despediu. Era uma velha de uns oitenta anos, negra, cabelos todos tomados de brancura e presos com grampos. Um vestido surrado, um tanto maltrapilha, e com uma mala de rodinhas, e sacolas atadas por todos os cantos. Carregava uma sacola de feira também. Cara no entanto atenta, uma expressão cambiante, entre severidade e serenidade.

-Sou espírita sabe meu filho? Minha avó era francesa, meu pai, africano. A África, tem caldeirão lá, magia negra. Nasci na Bahia, mas vim cedo pro sul. Aprendi e estudei muito, equações e termodinâmica. 

-Ah sim.

- Sabe o que é um ovo de Colombo?

-Sei sim, é um ovo que pára em pé. 

-E sabe como fazer isso?

- Não. 

-Ah, mas você tem de perceber que existem vários tipos de ovos, né. De galinha, de pato, de codorna...Só te digo isso..

-Hum...

-Sabe, meu filho, essas mulheres brancas aí, são todas filhas, frutos do tráfico de drogas.Metidas com drogas, que financiam essas roupas e compras. E sabe o que mais? Essas criancinhas aí, todas mascando chiclete, é tudo maconha, eles poem no chiclete delas para as viciarem desde cedo, mascando e mascando. Aliás, esse senhor que estava conversando comigo, traficante. Ainda bem que não acreditei em nada do que ele me disse. 

Respirei aliviado e comecei a depositar mais confianca na conversa. Não que fosse esperar lógica ou sentido nela, mas iria continuar a me distrair um bocado...Falou de plasma sangüíneo, de mulheres na política, de Margareth Thatcher, de Dilma Rousseff, e de outras coisas. Disse que quando chegava seis horas ali em São Paulo, Iansã vinha devagar, mansa, ocupando todo o espaço da rodoviária, numa imensidão gelada. Durante a conversa eu batia cadenciadamente minha mão esquerda numa mesinha lateral. Ela me repreendeu e advertiu, com aqueles olhos azuis arregalados, que eu não devia fazer aquilo, que chamava Exu. Tentei quebrar aquela situação, que ficou um pouco desconfortável:

-E de onde a senhora vem?

-Sou de todos os lugares e de lugar nenhum. Vou ao Rio de Janeiro, pego meu onibus às seis e meia, tenho uma missão por lá. Viajo sempre pelo Brasil, sabe filho, mas nunca saio das rodoviárias. Tem muita energia ruim por aí, sabe? 

Ao longo da conversa, retirava de suas sacolas mais sacolas, e de dentro delas outras sacolas, e papéis embrulhados. E de dentro dos papéis, mais papéis. E um garfo de plástico. Até que retirou mais papéis e um papelzinho amassado, em especial. Era uma nota de dois reais. Havia então parado de procurar. E continuou. 

-A Igreja Universal me persegue, sei disso. Minha filha morreu por conta do tráfico. Fora esse perigos, acho que tem outros também, sabe, filho? Aqui em São Paulo, tem muito preconceito contra gente como eu. Contra preto, contra pobre, contra nordestinos. Há pessoas que me desrespeitam muito, essas brancas mulheres de traficantes. Ficam na fila, demoram dentro do banheiro, falando no celular, e nao me deixam usar o banheiro, aí eu mijo na roupa mesmo. Por isso às vezes fico fedendo.

Nessa parte da conversa, ela já falava rompida comigo, sabia que meu ônibus sairía logo, seu discurso voltava a si mesma, com um ritmo que somente ela acompanhava. Foi arrumando todas as sacolas, amarrando-as todas, embrulhando os desembrulhos. Levantou-se de pronto, arregaçou seu braço em minha direção, acenou e sorriu. O sorriso familiar, que permeou toda a conversa. Ainda hoje não descobri de onde tamanha familiaridade. Sorriu largamente, e se foi, sumindo na multidão. Eram seis horas em ponto. Rodei todo o terminal depois disso, até a hora de partida de meu ônibus. Não a encontrei mais.

Um comentário:

  1. Ainda estático com essa história desde a noite em que você nos contou. Vejo o rosto surpreso da Clarissa e quase posso me ver, ali suspenso, bebendo bobo as palavras e cervejas.
    Como se fossem intervalos de ficção nas nossas vidas e nos levasse à terceira pessoa - seria isso um lampejo de autoconsciência? Uma sensação crua...

    ResponderExcluir