"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Mais Fernando Novais

Capítulo III- Os problemas da colonização portuguesa.


Na segunda metade do século XVIII, convergem duas tendências no comércio colonial e internacional: de um lado, o desenvolvimento irreversível da revolução industrial inglesa exigia cada vez mais a abertura dos mercados ultramarinos consumidores de produtos manufaturados; por outro lado, a política de autonomização e desenvolvimento econômico dos países ibéricos ia cada vez mais dificultando a penetração dos produtos ingleses nos mercados do ultramar pelas vias metropolitanas. (p. 123). As tensões desencadeadas pelo surto industrialista ameaçavam o próprio pacto da Inglaterra com suas colônias. Essa crise é apresentada como desafio à administração metropolitana, que a deveria enfrentar e resolver.

Portugal está em acentuado crescimento populacional. Apesar de alguns autores apontarem tal crescimento como relacionado a um certo incremento das atividades econômicas, o que se observa de fato é o profundo retraso de Portugal no sentido de levar a cabo um projeto de expansão das atividades manufatureiras organizadas em moldes capitalistas, o que já havioa sido denunciado por Alexandre de Gusmão, D. Luís da Cunha e outros. Uma política verdadeiramente protecionista e industrialista não se articula antes da terceira fase do governo de Pombal, que conduziu, segundo o autor, política manufatureira coerente e sistemática- tratou-se de esforço de recuperação. Esse desenvlvimento é tardio, mantem o problema do atraso e decadência. Já o Brasil mantém, em suas estruturas básicas, no arcabouço de sua economia exportadora e nas feições de sua sociedade escravista, os traços fundamentais da vasta zona periférica de exploração das economias dinâmicas do Velho Mundo.

Como Portugal poderia defender seu patrimônio (preservar seus domínios coloniais)? A defasagem do crescimento português em comparação às demais metrópoles europeias, e a pequenez geográfica do reino luso em comparação a seus domínios tornavam a manutenção territorial um problema. É no período do gabinete de Pombal que se lançam as linhas de definição territorial e preservação das fronteiras. A transferência da capital do Brasil para o Rio de janeiro e a do Governo do Maranhão para Belém do Pará demonstra essas preocupações de natureza geográfica. A competição colonial é agravada de forma definitiva, revestem-se de preocupações militares a questão da proteção do território e da integridade das possessões. Havia a preocupação também de certo perigo interno de uso de força e violência (causados pelos naturais do país, p. ex.). Os colonos começam a tomar consciência das oposições de interesse, a assimilar ideias revolucionárias, a aderir a ideias de contestação. Uma vez rompido o primeiro elo - a independência das colônias inglesas da América Setentrional - todo o arcabouço do Antigo Regime entra em crise. Por isto mesmo, a defesa do patrimônio colonial significava também a manutenção do absolutismo na Metrópole.

A importância da filosofia crítica da ilustração passa a se constituir como parte integrante do processo de alteraçao estrutural. Convergiam argumentos idealistas e argumentos utilitários para configurar o anticolonialismo das Luzes, que criticavam a dominação política da Metrópole, exclusivo comercial, escravismo e tráfico, a América voltava a penetrar no horizonte intelectual da Europa. A face reformista das luzes que incidirá mais sobre a metrópole, na colônia, a face revolucionária. A literatura iluminista será recorrente nas estantes dos intelectuais brasileiros desse período, que passarão a tomar consciência de que a Europa estava chupando toda a substância das colônias, de que o rei era como qualquer de nós, e que isso de religião é peta.

O que se tentará fazer é impedir o enfraquecimento do exclusivo metropolitano, coibindo o contrabando através de severa fiscalização e legislação. A metrópole não podia abrir mão do sistema. Curioso dizer que o contrabando era ele também um flanco de entrada de livros proibidos e mercadorias que eram impedidas de chegar aqui. Uma certa resistência, por parte dos colonos, à prática do exclusivo metropolitano do comércio, vai se engendrando com o próprio desenvolvimento da colonização. O regime promovia incrível alta dos preços e escassez das mercadorias estancadas, e criava condições para o florescimento de uma sinistra casta de atravessadores. Claro, o sistema era criticado pelos teóricos do mercantilismo ilustrado. Como também o foram as Companhias de Comércio. Há uma fissura entre os interesses dos mercdores e os interesses da Metrópole.

Também era necessário reover os óbices internos que tivessem operado no sentido de travar o desenvolvimento industrial e canalizar as vantagens da exploração colonial do sentido de superar a acumulação primitiva e desencadear um processo de desenvolvimento manufatureiro. Nessas condições, a própria assimilação, pela Metrópole, dos estímulos, engendrados pela exploração das colônias, se constituía num problema. Assim é que o Brasil vai se tornando cada vez mais vital para a sustentação da metrópole. Várias linhas de argumentação são conduzidas para justificar o atraso da metrópole portuguesa: uma que estabelece que o período filipino teria impedido o reino de cumprir sua vocação ao progresso com D. Sebastião, em clara interpretação ufanista: uma segunda vertente, que propugna a ideia de que a perda das feitorias do oriente, a descapitalização de Portugal pelos espanhóis e o atraso do Reino pela decadência espanhola. Uma terceira linha atribui o atraso do reino à ação expoliativa da Inglaterra. E uma última linha explicartiva afirma que as próprias colônias (falta de gente, atraso da agricultura, não desenvolvimento manufatureiro) seriam responsáveis pela ruína de Portugal.

Esta última linha é exposta pelo autor como capaz de explicar parcialmente a decadfência do Reino, mas que certamente se somavam a vários problemas que se ligavam uns aos outros, em que o Portugal da época moderna parece configurar a situação de cristalização do capital comercial, que cria classes não-produtoras, homens de negócio, gente da nação, reinvestindo-se na riqueza móvel, se bloqueava a transição da acumulação mercantil para o setor produtivo. A formação social decorrente do quadro econômico é, portanto, fator de manutenção das estruturas arcaicas e do engessamento da modernização/industrialização portuguesa.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Começa a saga cronometrada

Não faço ideia se tem alguém lendo meus posts. Mas hoje começa uma saga do desespero. As seleções de mestrado batem às portas, as leituras ficam para trás. Precisando reativar a memória, vou rabiscar umas espécies de resenhas/resumos do que já li. Transformando meu blog em um "porto-seguro" de informação um pouco mais sistematizada: tudo bem, leitor, se vc não se interessa por história cultural ou social.

Um espaço meio egoístico, este. Mas em breve volto a trazer coisas criadas por mim mas com finalidades não-egoístas.

Vou começar com o livro do Fernando Novais, tão propagado como um dos "revolucionários" historiadores pela geração USP, que "inaugurou" uma análise do processo de desmontagem do Sistema Colonial não apenas com os olhos intestinais e tradicionais dos intérpretes (sociólogos e economistas tributários de uma historiografia muitas vezes desenvolvida com alguns tons marxistas, como Caio Prado Júnior e Celso Furtado), mas trazendo a si certa posição de historiador "hard" (se é que assim podemos colocar), conferindo uma visão estruturante e globalizante do colapso do Antigo Regime e do próprio Sistema Colonial, pari passu.

Revolucionário ou não, o livro Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808) lança mão da tese de que "a política (portuguesa) relativa à colônia ("brasileira") se manifesta como resposta aos problemas efetivos que a manutenção e a exploração do ultramar apresentavam à Metrópole" (p. 5). O fenômeno específico é o quadro de certo aparato mental dos dirigentes metropolitanos que, por meio de normas e ações, conduzem as transformações inseridas no quadro maior, de mudanças estruturais e colapso do Ancién Régime.

Capítulo I- Política de Neutralidade.

A expansão ultramarina e colonial é um processo inserido como elemento decisivo no jogo político das principais potências europeias, as quais buscavam sua hegemonia. Entender o surgimento de cada potência europeias significa estabelecer as preponderâncias sucessivas que é parte integrante do próprio processo de formação dos estados modernos.

Portugal e Espanha, superados por outras nações e colocados em condições secundárias no curso da modernidade, conseguem se manter relativamente autônomos e manter suas possessões coloniais. Portugal consegue manter seus domínios, atravessando a sucessão de crises e tensões, ao alinhavar-se à Inglaterra e constituir o Brasil como núcleo essencial da máquina colonialista. Inglaterra garantia a proteção se Portugal concedesse vantagens comerciais no mercado ultramarino. A preservação das colônias (e sobretudo das possessões na América Portuguesa) se torna condição de manutenção da própria existência de Portugal- é moeda de troca para as proteções e intervenções inglesas. Resumindo: Inglaterra protege as colônias e a metrópole para explorá-las em seguida. A ameaça vinha da Espanha bourbônica, apoiada na aliança com a França, que tinha planos de refazer a união ibérica. O autor diz que essa política portuguesa é de neutralidade (coisa com que não concordo)

A extensão e importãncia das colônias ibéricas só foi mantida graças à rivalidade entre Inglaterra e França, e a diferença entre posição política e econômica das metrópoles também. O evento que aponta a crise do Sistema Colonial mercantilista é a independência das colônias inglesas. A defasagem entre a posição econômica política e econômica das metrópoles é, por si só, elemento intrassistêmico que justifica a crise superveniente.

Capítulo II: A Crise do Antigo Sistema Colonial

Discute-se o sentido comercial da colonização moderna, os elementos caracterizadores do Antigo Regime: a centralização política, sociedade estamental, capitalismo comercial, expansão ultramarina e colonial são caracterizados, e suas decorrências (escravismo como tendência à primitiva acumulação de capital, consytituição de economias de subsistência voltadas a seu próprio consumo- daí a necessidade de se colonizar para o capitalismo - criando mecanismos em que se impunham as formas de trabalho compulsório). discutidas como fatores da montagem e organização do sistema colonial. Esses fatores desembocam na crise do colonialismo mercantilista, uma vez que a economia escravista e a produção para o capitalismo europeu solidificavam as bases sociais num binômio senhor-escravo: a linha de desenvolvimento econômico é a de complementar a economia central metropolitana. As colônias são o fator fundamental para a acumulação primitiva de capital das economias centrais. Além de ampliarem o mercado consumidor de produtos manufaturados, criando os pré-requisitos para a revolução industrial. A dinâmica do sistema, portanto, ao funcionar plenamente, vai criando ao mesmo tempo as condições de sua crise e superação. Nesse sentido, a competição das potências no Ultramar é furiosa, a Inglaterra conquista seu espaço hegemônico após a guerra dos Sete Anos e antes da independência dos Estados Unidos da América do Norte: fortalece seu exclusivo metropolitano com suas colônias, acentua a a penetração nas colônias ibéricas, através da metrópoles ou mesmo do contrabando. A ruptura do pacto, feita pela independência dos EUA, a possibilidade se torna realidade, as formas políticas republicanas acentuavam o quadro de crise não apenas do Sistema Colonial, mas de todo o Antigo Regime.   

A resenha continua.





quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Escravizar, conquistar, aniquilar: bem-vinda, brava gente!

Colando a postagem aqui que nunca sei o que pode acontecer com essas postagens por lá...

"...peço licença para uma breve digressão, nossa milícia senhor é diferente da regular que se observa em todo o mundo. Primeiramente nossas tropas com que imos [sic] à conquista do gentio brabo desse vastíssimo sertão, não é de gente matriculada nos livros de V.M. nem obrigada por soldo, nem por pão de munição; são umas agregações que fazemos alguns de nós, entrando cada um com os servos de armas que tem e juntos imos ao sertão deste continente não a cativar (como alguns hipocondríacos pretendem fazer crer a V.M.) senão adquirir o Tapuia gentio brabo e comedor de carne humana para o reduzir ao conhecimento da urbana humanidade, e humana sociedade à associação racional trato, para por esse meio chegarem a ter aquela luz de Deus e dos mistérios da fé católica que lhes basta para sua salvação (porque em vão trabalha, quem os quer fazer anjos, antes de os fazer homens) e desses assim adquiridos, e reduzidos, engrossamos nossas tropas, e com eles guerreamos a obstinados e renitentes a se reduzirem: e se ao depois nos servimos deles para as nossas lavouras, nenhuma injustiça lhes fazemos, pois tanto é para os sustentarmos a eles e a seus filhos como a nós e aos nossos: e isto bem longe de os cativar, antes se lhes faz um irremunerável serviço em os ensinar a saberem lavrar, plantar, colher e trabalhar para seu sustento, cousa que antes que os brancos lho ensinam, eles não sabem fazer: isto entendido, senhor?"

(Carta de Domingos Jorge Velho, dirigida ao Rei de Portugal, D. Pedro II de Bragança, na ocasião da destruição da resistência do quilombo dos Palmares. In : ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas. Ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 244.)

É curiosíssima a pretensão do homem de armas, a serviço da Coroa, no trato das gentes do sertão. Conforme se observa no trecho acima, as formas de dominação são atestadas pela obrigação ao trabalho compulsório nas lavouras e roças. Escravidão, sem tirar nem por. Por mais que fosse possível encontrar desargumentos ou injustificações da escravização indígena, com base no imaginário vigente à época, de uma vocação natural do negro africano ao trabalho e a consequente desvalorização (ou mesmo proibição ética e religiosa) de escravização dos gentios da terra, almas destinadas à salvação divina pela catequização, sua existência não pode ser negada.
Existira e precisava ser justificada. Se na América Espanhola o índio não fora feito escravo, mas submetido aos sistemas de trabalho compulsório em minas e plantations sob a vigilância de senhores encomenderos e capatazes, na América Portuguesa o indígena não terá a mesma sorte de uma sistema econômico propício a formas de dominação em rodízio de trabalho, como nas minas de prata de Potosí (dada a dispersão das tribos e dos agrupamentos aqui na Terrae brasilis). E por mais que o indígena submetido a tais tarefas fosse liberado após o período em que estivesse sob o jugo dos conquistadores, certamente seu retorno às origens não ocorreria nos mesmos termos.
O processo de conquista territorial e populacional na América Portuguesa proporcionava, portanto, uma gradual "inserção" dos cativos (sim, pois estão a ser dominados em cativeiro, em regimes de trabalho compulsório) à lógica do homem conquistador. Se a Igreja não se estendera em todo o território em missões de catequização, seu insucesso na empresa de completa conversão dos indígenas se observasse, o papel de inserção desse cativo ao "processo civilizador" (termo de péssimo gosto que menospreza o fato de civilização ser uma experiência de qualquer cultura humana) só seria possível pela lógica moderna da organização dos mundos do trabalho. O homem que trabalha, que se devota ao esforço diário de sua justificação, de sua fundamentação na ordem do mundo, marcado pela graça e pelo vínculo amoroso (conforme explicitamos no texto anterior), é o homem moderno. Fé passa a caminhar, de mãos dadas, com o trabalho no mundo moderno. Só a fé salva. Só o trabalho dignifica. Eis a lógica moderna, de lançamento dos alicerces mais sólidos (e ao mesmo tempo, mais assustadores) do capitalismo.

Caminhos do ouro, descaminhos da Justiça

Resolvi colar esta postagem de minha autoria aqui, já que nunca se sabe o que pode acontecer com um blog que não é seu.

Cada anno vem nas frotas quantidades de Portuguezes & de Estrangeiros, para passarem às Minas. Das Cidades, Villas, Reconcavos & Certoens do Brasil vão Brancos, Pardos, & Pretos, & muitos Indios de que os Paulistas se servem. A mistura he de toda a condição de Pessoas: Homens, & Mulheres: Moços, & Velhos: Pobres, & Ricos: Nobres & Plebeos: Seculares, & Clérigos: & Religiozos de diversos Institutos, muitos dos quaes nao tem no Brasil Convento, nem Casa.
Sobre esta Gente quanto ao temporal não houve atè o presente coacção, ou governo algum bem ordenado: & apenas se guardão algumas Leys, que pertencem às Datas, & Repartiçoens dos Ribeiros. No mais não há Ministros, nem Justiça que tratem, ou possão tratar dos castigos dos Crimes que nao sao poucos, principalmente dos homicidos & furtos."
IN: ANTONIL, André João. Cultura e opulencia do Brasil por suas Drogas e Minas ...Lisboa: Na Officina Real Dislandianesa, 1711, pp. 136-137.

A situação apresentada por Antonil é a que precedeu a separação da Capitania de Minas Gerais da de São Paulo, fato ocorrido em 1720. O interesse metropolitano somente se justificou no momento em que as Datas auríferas haviam sido devidamente estabelecidas, e as revoltas pela posse das minas, quais sejam, a Guerra dos Emboabas e a Revolta de Felipe dos Santos, efetivamente deflagradas e contidas.
Um novo pedaço da América Portuguesa se estabelecia com a ocupação de um imenso território adentro, com promessas enormes e desafios ainda maiores à dinastia de Bragança, que se via pressionada pela política de alinhamentos europeia (a Casa de Bourbon conquistando espaço junto à Espanha, intimamente ligada à França enquanto Portugal, diante da perda de territórios como de Sacramento e da anuência com as ocupações espanholas na Amazônia, articulou - ou selou- seu enredamento com a Inglaterra). O fluxo de imigrantes, esperançados pela promessa de riquezas, empurrava ainda mais a Coroa a agir na Colônia com braços fortes, até então não vistos cá nos trópicos, estruturando uma administração que não somente fosse capaz de fiscalizar, impedindo o contrabando, mas sobretudo de punir, evitando sedições e garantindo a "justiça", a "ordem", "a paz".
Esgoelavam-se os prometidos do ouro, revigorava-se mais um dos muitos capítulos da história da escravidão, num inagurado ciclo econômico, reproduzia-se um (ainda que relativamente tímido) ritmo de vida inédito, o urbano, estruturavam-se sociabilidades completamente novas. Eram os muitos homens de toda procedência, em busca de afirmarem sua existência na lógica da dádiva e da conquista.
A quem prestava o Direito, a quem era feita a Justiça, senão aos que nesta terra tudo queriam, tudo sonhavam e nada temiam? Para quem serviam as Leis? Tudo novo, nada novo...Estável lógica, essa da história da riqueza humana.
Engraçado como as decisões nos entorpecem, tragam, revolvem as partículas desse "eu" tão perdido, o sujeito desconhecido, pisoteado, retorcido, esfumaçado pelo convívio. Não, não sou fruto do meio. Mas sou um enxerto nele.

Quisera acreditar em escolhas puramente racionais, meticulosas, calculadas. Elas só são tomadas porque o têm de ser. Inevitável é escolher.

Remeto ao interessante trabalho de Natalie Zemon Davis, com o qual estou tendo contato nesses últimos dias, Culturas do povo. Os Griffarins da França quinhentista, homens operadores de máquinas de prensa gráfica, a revolucionária- ou nem tanto - engenhoca de Johannes Gutenberg, poderiam ser apenas frutos de seu meio: liam, ainda que o básico, para operar caracteres gráficos. Homens abertos à inovação técnica, abertos às investidas sedutoras do ascendente protestantismo. A máquina que operavam, operava mudanças em suas visões de mundo: por um lado, alguns se vendiam ao preço de banana, os chamados Forfants, para executar semelhante serviço. A desigualdade é certamente fruto da necessidade econômica, mas as duas estão a se interpor a todo instante. Não necessitassem de qualquer vintém, não estariam os Forfants a vender sua mão-de-obra a preço tão baixo. Não necessitassem as instituições de expedir papéis e comunicar-se em impressos tão velozes, não precisariam de Forfants. A lógica capitalista depende dessa mola da técnica: inventar a necessidade é inventar a desigualdade. Quem puder pagar pela necessidade criada está investindo na possibilidade futura de novas necessidades serem inventadas. E quem não puder pagar, que arrume uma maneira para manter sua própria existência. Não se vende mão-de-obra, se atropelam potencialidades não desenvolvidas. A lógica é simples. Qualquer "outra" necessidade, que não a mais primordial do homem, é fruto do desenvolvimento tecnológico. Realizá-la depende de novos investimentos, ou de atropelar a própria potencialidade, operando a máquina, a preço módico.

É o início da desigualdade na civilização industrial. Escolher entre as Companhias criadas com o fim da sociabilidade e cooperação enre seus membros, ou a possibilidade das novas sociabilidades de certo tentador progressimo protestante? Não há escolha. O projeto da Igreja Católica venceu em Lyon, junto aos agentes da comunicação impressa, aproveitando-se da polarização do conflito entre Griffarins e Forfants. A pergunta é a mesma: escolheram? Racionalmente?

As demonstrações da autora sugerem bastante que não.