"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Mesopotâmia nas garras do Hoax


Recebi dia desses um e-mail, essas bombas sensacionalistas que deseducam as pessoas, despertam algumas curiosidades, movem crenças tolas. Vulgo: hoax.

Basicamente, o texto ressaltava toda a coincidência entre a região da Mesopotâmia e as inúmeras passagens bíblicas que aconteceram na região, dando a entender que se trataria de uma terra abençoada, santa, escolhida por Javé para seus feitos gloriosos e suas fúrias típicas do velho testamento, sem contudo aprofundar uma análise historicamente mais bem situada. O texto termina com uma pérola profética, como veremos a seguir. 



Basicamente, o que diz o e-mail:



1. Que o Jardim do Éden se localizava no Iraque. Bem, é uma especulação elaborada por teorias contemporâneas. Não é possível ter plena certeza dessa afirmação, mas o arqueólogo Juris Zarins afirma que sim, coincidindo imagens de satélites com descrições sobre os rios que formariam a região. O rio Gihon seria o rio Karun, no Irã, e o rio Pishon seria o sistema hídrico de Wadi Batin, que desceria até o golfo pérsico, próximo à estreita faixa litorânea do atual Iraque, região conhecida pela fertilidade de seus solos.



2. Mesopotâmia, onde agora é o Iraque, foi o berço da civilização. Bem, o berço de várias civilizações, pois a "civilização" é um conceito amplo, e seres humanos trabalhando  e se organizando socialmente já existiam milênios antes do nascimento de Cristo, em vários pontos do globo terrestre. A Região entre os rios Tigre e Eufrates abarcou um número gigantesco de impérios e civilizações, de assírios, acádios, sumérios, aquemênidas, hititas. Civilizações conhecidas por seus complexos sistemas religiosos, legais, por suas técnicas de plantio e irrigação, pelas táticas de guerra, por cidades, zigurates e palácios. 



3. Noé construiu a arca no Iraque. Sim, as origens de um dos povos que ocupou futuramente a região de Israel, os cananeus, estão profundamente entrelaçadas com o Iraque. O Pentateuco (5 primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteromônio, que compõem a Torá hebraica) foi escrito não anteriormente ao século X a.C. Vejam que cananita vem de Canaã,  por sua vez filho de Cam, que por sua vez foi filho de Noé. Cam foi um patriarca importante, nos relatos bíblicos de povoamento da região que hoje corresponde ao Iraque, Síria, Líbano e mesmo a Israel. Não custa lembrar: o dilúvio não é um relato original ou único na Bíblia cristã, ele está presente nos relatos de Atrahasis e de Gilgamesh da civilização acadiana, que coincidem com o período histórico de algo em torno de 2000 anos antes de Cristo. Estamos falando de uma região sujeita a cheias e vazões dos rios Tigre e Eufrates com frequência.





4. A Torre de Babel ficava no Iraque. Sim. Vejamos a passagem bíblica do Gênesis: "Ora toda a terra tinha uma só linguagem e um só modo de falar. Viajando os homens para o Oriente, acharam uma planície na terra de Sinear (Suméria); e ali habitaram." A necessidade de se fixar em um local propício ao plantio foi uma constante na região do Oriente Médio. Os povos que migraram muito provavelmente não falavam a mesma língua que a da civilização que ali já habitava, séculos antes. Lembremo-nos que a civilização babilônica foi conhecida por seus templos e zigurates enormes, dedicados às divindades a que prestavam culto (Marduk, Ishtar, Adad, e outros). Babel, em acadiano, de bab-ilu, significa "porta de deus". 




5. Abraão era de Ur, que ficava no sul do Iraque. Sim, o relato bíblico menciona claramente a cidade de Ur. Ur é uma das cidades mais antigas da história da região, e abrigava os caldeus. Abraão é o pai das religiões monoteístas, tendo revelado sua aliança com Deus por meio de sacrifícios (algo que restou da tradição politeísta então vigente, oferecer animais em sacrifício dos deuses). Abrãao teria vivido, segundo estudiosos, entre os séculos XVIII e XIX antes de Cristo, e é considerado o pai das três grandes religiões monoteístas, em razão de sua aliança com o Deus único: o islamismo (seu filho Ishma-el, Ismael, teria dado origem ao povo árabe), o judaísmo e o cristianismo. 






6. A esposa de Isaac, Rebeca, era de Nahor, que ficava no Iraque. Legal, fera. Se Isaac era filho de Abraão, um "iraquiano", nada mais natural que tivesse uma esposa de origens semelhantes, e que houvesse mais gente originária dessa região, migrando e andando por Canaã, certo?

7. Jacó encontrou-se com Raquel no Iraque. Raquel viveu no período da primeira destruição do templo de Jerusalém pelos babilônicos. Jeremias relata que essa mulher teria chorado, pela dispersão de seu povo. Ora, as andanças dessas pessoas pelo Oriente não surpreende ninguém, mais uma vez. 


8. Jonas rezou em Nínive, que ficava no Iraque. Sim, Nínive era a capital do Império Assírio. Jonas foi um enviado de Deus, segundo os relatos bíblicos, para avisar: aos Assírios que se arrependessem do derramamento de sangue que praticavam. O Império Assírio ficou conhecido por suas táticas de guerra poderosas, e pela dominação de vários povos na região, tendo inclusive dominado a região da Palestina. Uma guerra de forças entre uma civilização pequena e espremida, a dos hebreus, que afirmava sua força como "eleita por Deus", diante da força dos exércitos da região. 



9. A Assíria, que ficava no Iraque, conquistou as dez tribos de Israel. e 10. Babilônia, que ficava no Iraque, destruiu Jerusalém. Sim, afinal, impérios organizados, fortes e complexos, baseados na guerra, sobrepuseram-se a uma região ainda em formação, tribal, e disputada por outros povos. Tratam-se dos dois cativeiros do povo hebreu: o assírio e o babilônico. Nabucodonosor II, rei da Babilônia, que libertou o reino Assírio do jugo de Nínive, expandiu os domínios até o Egito e a Síria, e dominou inclusive a Palestina. Uma série de judeus foram então deportados de sua região, o antigo reino de Judá; trata-se da primeira destruição do templo em Jerusalém e primeiro grande êxodo do "povo escolhido". A dominação babilônica tem grande papel simbólico na descrição bíblica: Babilônia é sinônimo de confusão, pecado e luxúria. Essa visão retrata o que possivelmente representou a dominação agressiva, violenta, dos povos de Judá, quando cativos na região do atual Iraque, dando origem aos relatos dos profetas Jeremias, Ezequiel e Daniel do velho Testamento. 

(E outros simbolismos mais: origem dos Reis Magos, Baltazar, Nabucodonosor levando os cativos hebreus ao Iraque, Daniel na cova dos Leões, etc.)


Muito bem. 



O tal e-mail abrilhanta-se ao fim, ao dizer que o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, revelado a Maomé por Deus, conteria a seguinte frase, em 9:11: 


"....aquele descrito como o filho da Arábia será acuado por uma águia amedrontadora.As garras da águia serão sentidas por todas as terras de Allah e Lot, quando algum dos povos tremerão no desespero e no júbilo. Quando as garras limparem as terras de Allah, haverá paz."

Nada mais falso. Pegaram o tal 9:11 para uma associação mística com o 9/11, como escrevem os estadunidenses a data de 11 de setembro.

Vejamos o que de fato diz a Surata 9, versículo 11 do Corão: 








fa-in taabuu wa-aqaamuu alshshalaata waaatawuu alzzakaata fa-ikhwaanukum fii alddiini wanufashshilu al-aayaati liqawmin ya'lamuuna 


9.11 . "Mas, se se arrependerem, observarem a oração e pagarem o zakat, então serão vossos irmãos na religião, combatei os chefes incrédulos, pois são perjuros; talvez se refreiem."

A Surata (assim é o nome dos capítulos da escritura sagrada do Islã) número 9, versículo 11, não faz nenhuma referência à águia. Não há qualquer referência à águia em todo o Alcorão. Nem há, ao longo de todo o texto, qualquer menção a "Arábia". Essa noção geográfica não existia à época, as terras onde o Islã se expandiu se dividiam conforme suas origens e povos que nelas viviam. 

O Zakat é um tributo religioso, é um dos pilares da fé islâmica. Como se fosse um dízimo, só que obrigatório para essa religião.

Então não há nenhuma profecia quanto ao 11 de setembro, nem à guerra contra o Iraque, nem à suposta Paz promovida pela guerra na região, no texto do Corão. 



O texto é cretino, pois afirma que a própria escritura sagrada do Islã teria previsto que a paz no Oriente Médio se daria no dia em que a Águia (símbolo dos Estados Unidos da América) impusesse seu medo às terras da "Arábia". Sinceramente...

Aliás, sabemos bem que 11 de setembro e Guerra do Iraque foram relacionados de forma tosca e sádica pelo serviço de inteligência norte-americano, que batizou metade do Oriente Médio como "Eixo do Mal". Surrealismo efetivo, que descambou nessa guerra estúpida que vimos acontecer há mais de dez anos. 




quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O outono brasileiro: antropofagia do futuro



Este texto foi escrito em meados de julho de 2013. 

Um mal-estar aparente

Tentarei neste texto domar o presente, encerrá-lo em palavras, dividir a realidade em fragmentos, com o evidente risco de não dar conta de expressar toda a complexidade do que acontece no Brasil neste meado de 2013. Nos tempos em que a escrita, da expressão partilhada de uma racionalidade comunicativa se encontra cada vez mais destituída de sentido, e as tênues linhas das emoções – individuais ou coletivas – expressam com muito maior crueza e vigor a politicidade dos seres humanos.

O mergulho nas compreensões subjetivas é algo extremamente importante em qualquer análise que se faça. A civilização ocidental, essa criação fabulosa que grita, irascível, os preceitos de sua legitimação, e se ensurdece com o mesmo grito, combinou uma receita altamente danosa, que lhe provocou um profundo mal-estar, um estado de enfermidade perigoso: a promessa de que qualquer um pode ser o que quiser, em escolhas e sortes combinadas, com as representações em diferentes níveis, mas sobretudo no político, para as quais a mentira e a ilusão são máximas.

A promessa de que qualquer um pode ser o que quiser, na verdade, é a primeira decepção perante a qual se deparam os seres humanos: a vontade não é o império da realização, pois o futuro promissor, as preocupações em torno do crescimento econômico, que seria capaz de trazer a todos uma vida materialmente próspera, se viu derrapando nas sucessivas crises de produção, nos desníveis do comércio internacional, nas formas de concentração e acumulação de riquezas, e no descompasso entre crescimento demográfico e crescimento efetivo da renda das famílias.

Afinal, nosce te ipsum, conhece-te a ti mesmo, não significa torna-te o que quiseres. Há uma amarra poderosa da existência humana, da livre expressão do humano profundo. Sua razão é objetiva, concreta, material. 

As representações, no papel de direcionarem as ações humanas coletivas, isto é, partilhadas por um senso comum, vão caindo por terra: o que representa uma vida feliz, realizada? Poder pagar por bens de consumo, carros, viagens, casas, ostentar condições superficiais de sentido à vida? O que representa, no nível das decisões coletivas, a vontade das pessoas? Umas centenas de eleitos por meio da manifestação de vontades despida de sentido, tornada obrigação no Brasil, alçados como projetadores de esperanças na promessa de um futuro próspero, que demora a chegar, ou a alguns poucos chega?

A combinação entre as representações que direcionam as vidas humanas, e o fracasso da vontade como definidora do destino provoca, em grande medida, o mal-estar contemporâneo. As promessas do futuro se desfazem, a individualidade grita para se afirmar e perde as batalhas diante da vitória dos constrangimentos, a ocidentalidade escolhe a via tortuosa entre o representativo e o promissor, e se depara com um exército de decepcionados.

Esse processo explica, em parte e de forma genérica, a sensação de insegurança que é tão comum às pessoas, e o estranho sentimento de não entenderem ao certo o direcionamento que dão às suas próprias vidas. De nadarem sempre em benefício e no sentido de uma mesma maré, repleta de altos e baixos, onde também estão nadadores afogados e outros mais habilidosos.

A (re)volta ao Brasil

Este mal-estar não é prerrogativa brasileira. O grande pedaço de América, paraíso abundante de recursos, palco de contradições as mais distintas e experiências as mais diversas, caiu no infortúnio contumaz da vida ocidental: promessas se repetem, a vida coletiva é status de realização em construção – em desenvolvimento. As representações da vida social constituem ilusões, o jogo das farsas políticas, em muitos momentos, deixou esquecido pelos cantos o interesse coletivo, em detrimento dos anseios de grupos que disputavam o poder: empresários, latifundiários, arrebanhadores de almas crentes.

Aqui, a manifestação do excesso só é compreensível pela via antropofágica. Deglutir a cultura que veio, devorá-la por completo, e regurgitar o visceral, que se faz novo. Essa parece ser a promessa constituída por esse vasto continente, aos que insistem em estudá-lo em sua formação idiossincrática. Estudo desnecessário, não estamos em formação, estamos em conteudização. Forma o Brasil já possui, seu conteúdo é que está sendo diariamente inscrito nos processos globais hodiernos de significação social.

Quero dizer, o Brasil, ou a tal "civilização brasileira" está aprofundando aquilo cujo significado, perdido, constituiu o traço fundamental de um rabisco perverso, que separava forma de conteúdo, autor de obra: cidadania. Está, afinal, redescobrindo seu todo, e não apenas exibindo as formas ou rearranjando-as. Está preenchendo-as de conteúdo, historicamente esvaziadas.

Correto. O vaivém de primaveras árabe, movimento dos indignados, ocuppies e outras formas de insatisfação parecia distante, ao mesmo tempo que conectado à solidariedade cibernética deste lado de cá. Aqui vínhamos digerindo aos poucos essas realidades aparentemente distantes, e observando, dia após dia, a sucessão de problemas que ora se acirravam, ora evanesciam, ao sabor das crises, dos ânimos e das disputas institucionais e sociais domésticas. Essa mistura entre o doméstico e o estrangeiro, se durante muito tempo alicerçou as bases de “formação da civilização brasileira”, foi absorvido pelo mal-estar próprio da vida ocidental, nos tempos mais recentes, e combinou-se de forma explosiva para diferentes setores da vida urbana neste país.

A urbe, cidade das promessas

Pois na cidade brasileira, sobretudo na grande cidade brasileira é que as contradições se fizeram evidentes. Pelo menos quinze cidades brasileiras possuem mais de um milhão de habitantes, número bastante significativo, se considerarmos que a região metropolitana de uma delas, precisamente São Paulo, concentra cerca de um décimo da população do país.

E não à toa é em São Paulo que a cidade imensa, de fartas promessas e do acelerado crescimento populacional fruto da também acelerada industrialização, deu início a uma série de protestos e manifestações, que hoje são encarados como desencadeadores do outono brasileiro. O outono que enche ruas de insatisfeitos, em busca de manifestarem o sufocado, extravasar o que ficou jogado aos cantos, esquecido por promessas e desamparado de respostas.

São Paulo, surpresa quente de 2013, porque contrariou expectativas historicamente construídas, de uma sociedade marcada pela pujança econômica alicerçada num espírito faminto de seres que se atribuíam a responsabilidade por sua própria sorte. Livres, bandeirantes, quase predestinados, que viveram o intenso e violento processo de urbanização e industrialização no século passado, construindo uma sociedade na qual surgiram segmentos urbanos avessos à conformação política brasileira, à diversidade regional e que se arroga(va)m, não raro, como os motores e alicerces econômicos do país.

Sua sorte, contudo, foi tão infeliz – ou ainda mais – que a de muitos dos que habitam as grandes cidades brasileiras, onde viver bem parece um projeto longínquo, sem consistir preocupação de mandatários eleitos. Colapsou-se.

O Movimento Passe Livre, com origem no começo deste século XXI, construiu sua pauta a partir da necessidade de apropriação espacial da grande cidade brasileira. Quase sempre essa cidade é constituída de um centro rico e dinâmico, onde se concentram boa parte dos serviços, do comércio, das empresas e dos escritórios, e de uma periferia pobre, populosa e alijada da vida comum nesse espaço urbano. Desamparada de serviços, muitas vezes desatendida de lazer, e jogada ao esquecimento dos serviços públicos e do dinamismo da iniciativa privada. A pauta do transporte na cidade grande, portanto, é a pauta que coloca no centro das atenções esse conjunto de expectativas das pessoas que habitam uma grande cidade, que objetivam não apenas trabalhar no centro da cidade, mas usufruir dela de forma democrática, igual, descentralizada, negando o direito exclusivo de alguns poucos segmentos sociais. Locomover-se livremente na cidade é apropriar-se de seus diferentes espaços, sem os muros habituais que separam centro da periferia.

É na cidade grande brasileira que esses muros são afirmados pela presença ostensiva de forças policiais, que infelizmente ainda pregam um modelo que privilegia suspeitas aparentes em estereótipos, para constituir flagrantes. Flagrantes, revistas, rondas e apreensões, que na maior parte das vezes recaem sobre as regiões periféricas das cidades, habitadas por pretos, pobres, à margem da apropriação de um espaço não diferente do que lhe foi colocado como “seu”. Seu espaço, sua gente, sua diferença, infelizmente distanciada da cidade centro, que pulsa com seus excessos e suas promessas, que um dia trouxeram retirantes e novos moradores que construíram a mesma cidade. O centro tem seu alicerce na diferença com relação à periferia. E na indiferença de quem o habita em relação a quem habita a periferia e vive, quotidianamente, as opressões costumeiras do sistema, que mata diariamente milhares de jovens pretos entre 18 e 25 anos nas grandes cidades brasileiras.

A distância contorce a comunicação. O conflito se oculta aos cantos, se abafa na periferia, se remodela, distante dos olhos centrais. E quando ameaça eclodir, as mesmas forças policiais agem com a resposta repressora, imediata.

A distância precisava ser afirmada ainda mais, entre essas duas cidades brasileiras, quando os grandes eventos se tornaram a pauta prioritária da agenda política recente. Remoções forçadas, desocupação de espaços públicos, ocultação de moradores de ruas, o debate sobre internação compulsória de usuários de crack, um estado de coisas absolutamente ilusório, maquiado, que buscava ocultar as mazelas construídas no espaço urbano, desculpem o uso da expressão, mas muito certeira, “para inglês ver”.

O direito à moradia, sucessivamente negado a parcelas da população pelo poder público, em programas de financiamento fabulosos, para os quais muitas vezes os mais pobres jamais poderiam fazer parte, enquanto empreiteiras valorizavam terrenos e jogavam o perverso jogo da especulação imobiliária, ressaltava ainda mais a distribuição desigual do espaço urbano brasileiro.

Justificadas as bandeiras dos protestos? Sim e não. Razões não faltariam para sair às ruas e gritar, clamar por um outro projeto de cidade. Mas não seriam, ao mesmo tempo, as motivações que levariam outras tantas cifras humanas às ruas. Não há cadeia causal, linear, no processo de ocupação das ruas brasileiras, há, isso sim, uma insatisfação geracional, geração que pouco havia experimentado, com tamanha força, a rua, este fantástico cenário dos indignados.

A cidade é a causa, pois é na cidade que a maior parte do país vive e se desencanta. É na cidade onde sonhos se interrompem e esperanças se alimentam. Mas não é a cidade a causa primeira, e nem a última para o grito do outono. O início da onda de protestos com o movimento passe livre desencadeou, com jovem vigor, um aprendizado importante e indecifrável para quem não estivesse por ali. Afinal, por que tanta repressão? Por se querer ou se lutar por uma sociedade melhor? Por gritar o que se pensa? Por não ter medo de fazê-lo? Por simplesmente ocupar a cidade, na qual a máquina e o motor são soberanos, e ditam a ordem lógica de seu tempo?

A violência da sociedade brasileira, costumeiramente encoberta e adoçada pela cordialidade cultural, demonstrou sua voracidade: acertou em cheio setores médios urbanos, para os quais os dramas habituais de repressão que vivem os habitantes de periferias jamais foram tão evidentes. Essa onda de repressão policialesca encorajou os amedrontados, escondidos no manto de suas opressões diárias, a sair, e gritar. Gritar num movimento crescente, desconcertado, na esperança de ser ouvido, entre os gritos de uma competição internacional de futebol que se anunciavam.

Isto aqui que vivemos não é nem foi nenhuma primavera. É um outono, no qual, em vez de folhas das árvores, espera-se que caiam as máscaras das representações – sobretudo políticas - , que pouco comunicam e, de forma muito débil, representam. E que o inverno não esfrie, sucedâneo, a chama que nos move em direção ao aprofundamento e radicalização desta jovem democracia.

Política e polícia: o simbólico como erro do sistema

Essa se coloca como chave explicativa: a democracia, suas regras de funcionamento e sua cara nada democrática. A democracia brasileira me faz lembrar uma charge do Angeli, esta aí embaixo: é uma festa só para os sócios do club privé:



A relação entre Estado e sociedade civil ainda não foi bem equacionada no Brasil. Mesmo com os avanços das formas de participação da segunda no primeiro, com a composição de conselhos de políticas públicas por movimentos da sociedade civil organizada, com as consultas públicas e audiências, ou ainda, a experiência pioneira de orçamentos participativos, a cidadania democrática e popular sofreu, nos últimos dois anos, uma clivagem importante: a excessiva burocratização das decisões políticas, cada vez mais tomadas e concebidas em gabinetes, e cada vez menos em sintonia com as vozes organizadas da sociedade civil.

Esse fator é algo importante no processo, e precisa ser corretamente avaliado. O espaço concedido aos movimentos sociais na composição dos governos petistas nos últimos anos criou, por um lado, uma importante agenda política para o país e, por outro, uma espécie de acomodação desses mesmos governos: a falsa noção de que as instâncias participativas garantiriam a permanência dessa agenda popular, dos interesses da sociedade civil organizada e de um projeto de país que evitasse o conflito por meio da participação democrática.


Acontece que essa agenda não se permaneceu. E não se permaneceu, ou foi desviada, exatamente pela excessiva burocratização decisória, marcada pelo tecnicismo governativo, pelos impulsos das decisões de gabinete, por um congresso desmoralizado politicamente, no qual a representação política se traduz quase sempre e somente em obtenção de vantagens pessoais, fisiologismo e trocas entre financiadores de campanha polpudos e votações descaradamente óbvias. Escassas são as propostas levadas a sério, apresentadas e elaboradas por congressistas.

O jogo precisa ser jogado, de forma plena, por seus protagonistas. A distância das várias cidades se justifica no uso da força policial, essa máquina fabulosa de arbitrariedades, pré-juízos e estereótipos, tão característicos de sistemas autoritários, em que nenhum argumento minimamente racional é capaz de espancar, sequer levantar um dedo, contra a supremacia da vontade, arbitral, estatal, institucional, estúpida. Esse resquício fabuloso permanece distribuindo bônus aos ganhadores do jogo social, que espelham neste país imenso, de várias cidades imensas, outros imensos abismos entre centro e periferia, entre norte e sul, entre pretos e brancos, entre pobres e ricos, entre Zona Norte e Zona Sul.

Polícia tem um papel simbólico e efetivo,  e a política represent-ativa, idem. Represent-passiva? Tampouco. Pois nem mesmo na passividade de espectador, que vê diante de seus olhos a convulsão incerta, o agarramento do virtual e o ajuntamento real dessa fauna pós-moderna, fervilhante, foram capazes de uma mudança mais aprofundada sobre suas condutas. O jogo real segue nos símbolos de uma ordem violenta. Crua, que transparece como paz democrática. Como estabilidade institucional, como força mágica da vontade. "Confirma" uma tecla verde, cria-se uma fábula. A fábula do desinteresse dos apertadores de teclas, e a fábula do interesse dos conduzidos aos assentos, por uma mágica distinta, mas não menos verde que o botão. Notas verdes e pretas, que fazem estádios, mas não transportes, fazem fantasias, mas não escolas, nem centros de saúde, nem hospitais. A palavra de ordem é uma só: erro. Percebemos.

Essa simbologia do ordeiro, do capaz de permanecer, reproduzir-se, manter-se foi afinal desafiada. O sistema não pode ser baseado em erro sequencial. Pifa.

O ciberespaço comprova. Erros costumam exigir que o sistema se reinicie. O ciberespaço cosmoPOLITIZA o humano. O saber, o discurso, a compreensão, a informação, afinal, saíram da roda Acropolítica, encastelada, de meia dúzia de deuses e deusas. É o período de uma agorapolitica, aberta, nas ruas. E sem agorafobia. 

Estamos engolindo nosso passado, amargo. E digerindo o presente. O futuro, está ali, à nossa frente, pronto para que o devoremos. 




Sobre Marretas e Divãs



"O importante não é o que fazemos de nós, mas o que nós fazemos daquilo que fazem de nós."
JEAN PAUL SARTRE (1905-1980).

Nada o faria melhor que aquela recomendação. Alguns fins de semana no sitiozinho, nada demais. Ainda que abandonado, um amontoado de touceiras de capim, teias de aranhas e construções de alvenaria. Aquilo pertencia a tio Augusto, coisa qualquer de uma fortuna desperdiçada. Mas pertencia de fato, a imagem daquele lugar era uma pintura do velho avarento: quase nada nascia ali, algumas bobeiras feito goiabas e tangerinas, um vazio de construções: a casa com dois quartos, caso alguém resolvesse passar por ali uns dias, o quartinho para o caseiro pôr as coisas só - nem casa para o caseiro havia, o que denunciava uma desconfiança afetada. Enfim, quase tudo ali remetia aos últimos dias daquele velho desconfiado, miúdo em meio àqueles olhos imensos que lhe sulcavam a cara.

O sítio lhe ficara de herança. Mas passar uns dias ali cavucava algo de letárgico, e apertos no coração não poderiam lhe fazer bem. Não que sentisse saudades do velho tio, não, aquele homem ranzinza não conseguiu provocar sentimento algum em quase ninguém durante sua vida. Mas aquele seu fim de solidão e doença certamente eram visíveis naquele pedaço de terra solitário e doente.

Daí que Raul Gonçalves, o doutor Raul Gonçalves, em atendimento a seu terapeuta, resolveu fazer daquela herança aquilo que nunca havia sido: razão de encontros com a família, com os amigos e, principalmente, razão de fuga daquela sua rotina forense. Claro, ia ser urgente colocar uma piscininha, fazer uma churrasqueira, ampliar a casa, contratar um caseiro, dar um jeito no jardim, plantar uma horta, enfim, coisas que conferissem àquele lugar uns quês de simpatia, aconchego e não mais um pedaço de acidez humana. Ah, os homens, se soubessem que a vida cabe em nesguinhas de momentos, em caixas do tamanho das de fósforos com coisas boas, talvez aprendessem a guardar essas caixas quando precisassem, e não sair por aí queimando todos os palitos como se precisassem de luz a toda hora. Falando em fósforos, uma churrasqueira de tijolos ia cair muito bem naquele canto perto daquele coqueiro torto. Mas nada disso, antes era preciso ampliar a casa, talvez demolir uma parede e puxar mais uns cômodos- coisa de três ou quatro- para receber bem as pessoas.

Num dia meio nublado, Tião, um homem seco, meio sisudo e indicado pela empregada do doutor Raul para a tarefa apareceu no sítio para o malfadado "puxadinho". Foi lá para quebrar umas paredes, nada mais, bobagens de começo de obra. Mas era o começo da obra. Doutor Raul, vendo aquele homem esgalhado em braços que mal davam conta de si mesmos, quiçá erguer a marreta para a demolição da parede, resolveu puxar assunto:

- Vai ser difícil aí, hã? Essa parede é velha, mas a construção é bem sólida....

E o pedreiro, com os olhos meio imundos de pó e retorcidos em direção ao advogado de meia idade:

-Quê isso, dotô. Isso aqui desde pequeno eu faço, ajudava meu pai a fazer laje, e de vez em quando derrubava umas parede também. Sabe como é, criança com marreta não dá muito certo. Mas fui pegando o jeito, hoje tô craque nisso aqui.

- Bom, só espero que o serviço fique bem feito. Maria me falou que o senhor faz bem as obras, e não cobra caro...

-Ah, seu dotô, sabe como é né, pedreiro não tem que cobrar caro não, não estudei feito o senhor pra fazer o que faço, faço apenas porque dá para criar os minino. Mas gosto de todo jeito.

- Que bom, então. É isso que vale, né não? Quero ver essa casa cheia, pra passar bons momentos com as meninas, sabe? Tenho duas filhas, a Claudinha e a Renata, uma de seis e a outra de nove. A Thaís, minha mulher, às vezes reclama que as meninas dão muito trabalho, que têm de levá-las à escola, inglês, e tudo o mais. Mas elas ficam muito presas dentro de casa, sabe? Um pouco de ar puro faz bem.

- É...

- Mas não sei. Minha mulher vive enterrada em terapeuta, ela diz que precisa desabafar aquilo que sente, para se ajudar. Ela fala que está sobrecarregada, que o chefe cobra demais, que as colegas todas são assim e assado e estressada com as coisas dela. Trabalha com design, sabe?

-Sei não, dotô.

- Coisa de desenho, entende? Aí, depois de a Thaís insistir demais na idéia, resolvi um dia ir ao tal do terapeuta também, porque ela me falou que só podemos crescer juntos, enquanto casal... Fui e ele me recomendou fazer terapia individual, pois juntos eu e ela não estávamos progredindo muito...Aí ele me falou que havia uma falta de foco, de objetivo de nós ambos, para crescermos juntos, e que o desgaste do trabalho estava afetando nossa vida em família. Acabei concordando, e realmente percebi que estava estressado. Daí, resolvi reativar esse sítio aqui, herança de família, pra ver se dou uma relaxada, sabe?

-Sei como é, dotô...

Nesse simples "sei como é", qualquer coisa podia significar, menos simples. Aquele falatório parecia distante de um homem que se resumia a três casamentos, algumas bebedeiras, sete filhos e trezentos e poucos reais no fim de algumas obras. Talvez lhe faltasse cabeça de advogado, talvez os três anos no primário haviam esvaziado qualquer conversa com palavras feito "terapeuta", "design" e "estresse", ou talvez aquele sol mormaçado, em meio às nuvens, estivesse lhe cozinhando as idéias.

Abanou uns mosquitos, resmungou que precisava voltar ao serviço, e assim se esgueirou daquilo. Nunca lhe haviam dito que tivesse "estresse". Nem sabia o que era isso. Ao menos, lhe restava a marreta.