"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Enrubrecimento

Teresa nao podia esperar. Eram anos convivendo com sua asma renitente, sua magreza ínfima, aquelas olheiras profundas. Sua origem nao era conhecida: tia Doca, mais que matrona, era a mae perversa de Teresa. Nao tinha mais ninguém que nao aquela velha obesa, a resmungar sobre o preco das carnes, entre um cigarro e outro que acendia e sufocava a pobre moca.

Morava ali, naquele barracao sem divisórias, misto confuso de panelas, caes, fogao e cama. Rangiam os vizinhos vez ou outra seus recorrecos e assobios, em rodas de samba das quais Teresa nunca quis saber de participar. Era uma alegria da qual nao podia compartilhar. Até aquele dia. Nao podia esperar. 

Meteu na bolsa os poucos dinheiros que ganhava como servicos gerais, e foi à Quinze de Marco naquela manha de sábado. Calor. Formigueiro humano. Pisadas. Pocas d'água. Pastel. Fumaca. Choros de criancas. Berros. Imundície. 

Nao importava. Em terra onde nao há carne, urubu é frango. Comprou um vestido, resgatou qualquer resto de autoconfianca, pos um batom do mais vulgar e um ruge na cara, e se estendeu até o anoitecer, naquele vaivém frenético. Hora em que simplesmente foi ao cinema. 

Era um filme antigo, com Bette Davis. Se reconhecera naqueles olhos, idênticos aos seus quando marejavam. 

Nunca se pode esperar. 

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Meu último sonho




Curioso. Discuto a imagem dos psitacídeos em minha mente. Tem o estigma do deboche, da irreverência, da contestacao. Meu periquito, foi com ele que sonhei. 

Estava lá dentro de sua gaiola, sempre nervoso, gritalhando seus sons sem melodia alguma. No sonho, meu pai achava que os jovens canários estavam muitos sozinhos em suas gaiolas. Precisavam de companhia. Foi quando teve a brilhante ideia de tranferi-los de suas pequenas jaulas para a do periquito. 

E por algum motivo mágico, depois desse fato, passei a entender o que falavam os pássaros. Dizia o periquito:

-Vocês canários sao muito idiotas. Vivem a cantar, cantar e cantar, enquanto eu denuncio toda a opressao e as mazelas do mundo. Um mundo que reproduz pássaros para mantê-los presos é, no mínimo, injusto. E vivemos aqui, à base desse alpiste ruim. Dieta variada nos é inexistente. 

E continuou a denunciar sua insatisfacao com a condicao de vida dos pássaros. Os canários pareciam nao dar muito os ouvidos. Completou:

- Vocês tem esse bico mole e curto, que só lhes serve para cantarolar. Eu pelo menos tenho um bico duro e pernas fortes, e com eles, posso abrir a porta da gaiola, mas nao consigo dela sair, por ela se fechar bem em cima de mim. Mas posso auxiliá-los a sair, para que conquistem o mundo. 

Dei as costas a esse converseiro passaral. Pensei comigo, quanta bobagem! Decorrido certo tempo (imposivel de se medir na longueza de um sonho - pode ter sido uma hora ou um lapso de segundo!), voltei-me à gaiola e vi apenas o periquito lá dentro, ainda reclamando. Seus companheiros haviam ido embora, para conquistar o mundo. 

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Assim, congelado. Nada de assado.

"-Avante, cavaleiros! A derrocada dos ídolos fajutos está próxima. Vamos executar nossas conquistas sem piedade. Pilhem, destruam, matem, estuprem. Ganhem a glória. O descanso eterno será de vocês!

-Senhor, nao consegue ver? Estao todos congelados...

-Brrrr..."

Óia a Onca!

Hoje me agucou a curiosidade uma notícia veiculada na Folha de Sao Paulo. Confundir a esposa com uma onca nao é algo de todo incomum. Meu tio mesmo apelida carinhosamente sua mulher de Dona Onca. 

Trágica a história, mas num nível de patetice absurda. Error in persona é uma das causas de exclusao de culpabilidade. Diz a legislacao penal que deverao ser levadas em conta as características da vítima virtual. Mas no caso em tela a vítima virtual (a onca) nao é pessoa, ainda que subsistisse o dolo do marido em matar um jaguar selvagem. Nao é possível se falar em error in persona.

Fico pensando sobre a legítima defesa, a ser provavelmente levantada no caso: a mata, a pescaria, o ambiente hostil dos sertoes brasileiros. 

"Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem"

Ainda que crente de repelir agressao injusta iminente ao seu direito à vida ou integridade corpórea, sempre as más línguas vao dizer: era uma onca aquela mulher. (Mas vamos combinar, confundir a mulher com um animal quadrúpede, em plena luz do meio-dia é um bocado estranho). Eis aí a notícia: