"Sabe o que é? Nunca procurei respostas. As perguntas, elas sim, me incomodam: ressoam, reverberam, ricocheteiam. É tipo um masoquismo da dúvida."

sábado, 29 de maio de 2010

I-Mensa

Entre um purê de batata, um arroz, e umas colheradas grudentas de suflê, alguns olhares trocavam. Uma bandeja, um redor amplo, vozes, restaurante universitário. Diziam. Olhavam-se uma conversa de atenções recíprocas:

-Sabe, nunca entendi isso de saudade. Acho que é insatisfação com o presente. Que parece cada vez mais demorar a passar. Ao final, envelhecemos e nos tornamos velhos saudosistas, jogando damas na praça.

-Você sabe que se a vida passa, a culpa é de quem vive. Mesmo que insatisfeito com o presente. As pessoas passam, as coisas perecem, a matéria é destruída, transformada ou qualquer baboseira que Lavoisier tenha dito. Mas a lembrança, essa permanece.

-Queria não viver delas. Acho que me iludo às vezes.

- Se está iludido, é porque vive. Outra coisa não poderia fazer nesse jogo, em que pelo menos termina algum dia. E sem vencedores ou perdedores que não um só. Diariamente.

-Te amo.  

Cotas raciais em audiência.



Alguns trechos que permearam a exposição de motivos em audiência no Supremo Tribunal Federal, sobre as cotas raciais no sistema de ensino superior público brasileiro, levantados pelo Senador Demóstenes Torres, do DEM-GO:

"Todos nós sabemos que a África subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo, para o mundo islâmico, para a Europa e para a América. Lamentavelmente. Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos. Mas chegaram. (...) Até o princípio do século 20, o escravo era o principal item de exportação da pauta econômica africana."
"Nós temos uma história tão bonita de miscigenação... [Fala-se que] as negras foram estupradas no Brasil. [Fala-se que] a miscigenação deu-se no Brasil pelo estupro. [Fala-se que] foi algo forçado. Gilberto Freyre, que é hoje renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual."

Lamentavelmente, o Senador parece levar em conta certas interpretações distorcidas, anamórficas sobre a formação social brasileira. Uma delas é essa insistência em bater na tecla da tese de Gilberto Freyre, como se a escravidão no Brasil tivesse sido algo leve, menos violento, mais ameno. Sabe-se muito bem que a implantação do regime de escravidão encontrou largas condições de desenvolvimento na economia atlântica, além de buscar caminhos e descaminhos para a acumulação do capital pelas classes mercantis dirigentes.

Temos que tomar muito cuidado com algumas análises. Não podemos observar o fenômeno do tráfico negreiro como se ele fosse um arranjo ou um instituto inerente às sociedades tribais subsaarianas, e tão somente, menosprezando a formação do sistema escravista colonial pela participação de outros agentes.

O sistema escravista colonial reproduziu diferentes interessados diretamente no tráfico: "brasileiros"(colonos), "angolanos" (colonos), portugueses reinóis, líderes tribais. Toda a rede de relações está criada em torno de um sistema que acachapa a organização dessas sociedades africanas (o número estimado de escravos arrancados de sua terra para o Brasil chega à cifra dos 06 milhões, do período colonial ao Império) para servir à formação de um capital primitivo, que alimenta as formas de produção mercantil e garante a subsistência de toda a exploração colonial.

Almas são o grande negócio dos homens.

É tragicômico procurar identificar responsáveis históricos, culpados primordiais, num processo multifacetado, fragmentado, irregular. Se a desigualdade existe, patente, evidente, a culpa é presente, é pela inamovibilidade, pela omissão de nossas instituições públicas.
 
Outra perspectiva, levantada pelo Ilmo Senador da República, é a de que tenha sido fundada a  mestiçagem brasileira como um gradual balanceamento das distinções, ou melhor dizendo, abismos entre a elite branca intelectualizada detentora dos meios de produção (restrita a números pífios) e os pretos escravos. Tal é de uma saliente ignorância.

As condições materiais de desenvolvimento social só foram dadas num momento de exclusão que passava por núcleos distintos: a família mestiça somente se tornará parte efetiva de nossas instituições sociais com a edição de leis de libertação dos escravos, e ainda assim de modo bastante tímido. Família, resguardando seus direitos e interesses, no sentido mais tradicional e conservador que possa ter (com pai, mãe, crianças, missa e educação) é branca e rica em toda a história colonial. É desse cuidado que a história social deve se cercar: os dados documentais em geral são escritos por aqueles que detem uma posição social bem definida, sólida, e revestida de meios que permitam o registro: instrução, ou condições de financiar aquelçes que procedam ao registro. Não preenchem o conteúdo de arquivos da história colonial brasileira famílias de negros, e mal são descritas as condições de homens brancos ricos que tenham se casado com negras. Em geral, as proles são geradas junto à senzala, criadas no meio doméstico os filhos bastardos são quando, muito, e de modo muito tangencial, inseridos em partilhas/inventários.  

O que pretendo dizer é que as mães solteiras, as proles bastardas, o mestiço, são todos cernes da construção da população nacional; potanto, há zonas muito insólitas que compreendem círculos de omissão e abandono da integração social e preservação de direitos. É extremamente ingênuo acreditar que a reprodução, o crescimento populacional de seres humanos tenha de ocorrer no âmbito da família, ainda que certos valores da época, tomados por "dominantes" (de fato, são valores contidos nos documentos, representam um conteúdo moral e cultural de camadas sociais dirigentes) reafirmem tal posição.

Conclusão inarredável, constatado o dado da mestiçagem brasileira, é a de que tal não deve ser tida como um processo homogêneo, gradual, bem formado, calcado em uniões não violentas, que desprezasssem a violência no âmbito doméstico, a exploração sexual, o estupro, e outras tantas formas de dominação e subjugação ainda presentes em nossos tempos.

E torna-se objetivo o problema de que mestiços também estão alijados do processo de integração social e racial.  A mestiçagem não é, nem pode ser tomada como fundamento do apaziguamento das desigualdades, como pretendeu Freyre. Não é a mestiçagem, em suas gradações, responsável por qualquer diminuição do abismo que distanciam o preto reduzido à condição de escravo do branco proprietário de terras. As desigualdades são objetivas, os encontros, desencontros e formação social são multifacetados. E as desigualdades, inicialmente materiais e raciais, permanecem materiais diante do espetáculo das raças.  

Entomologia

Sua face era rija. Seus óculos, circularmente convexos e de armação crua. Daqueles tempos em que pentes e tartarugas se associavam nas nefandas invencionices da moda, unitilmente relegada ao perecimento da matéria no tempo. Carcomera sua pele, marcada por rugas fugidias ao redor dos olhos e da boca. Aquela boca, cinza, de lábios miúdos e sem propósito, articulava palavras com precisão quase germânica. Ressibilavam, soltas, até a sobrancelha. Nada mais. Ficavam presas naquele ser limitado por sua própria condição. E perdiam-se na austera sombra acima dos olhos. Quando muito, escapuliam, descendo ao tailleur marrom surrado e metido junto a uma saia bege. Bege! Por que alguém lança mão de um tom que o faz destoar? Evanescera. Apagara-se. Tudo naquele ser tributava mofo. Naftalina. Passado. Irrelevância. Negação. Obsolecência.

Um meio-tempo, daqueles em que se deposita a crença de exercício de uma atividade, crescimento, busca, esmero! Quá, quá, quá. Qual nada! Meio-tempo é coisa para os tolos da repartição pública, cafezinho, destravamento social. A figura dos óculos convexos carregava sua corpulência sem qualquer presença. Enganava-se, hiperbólica, na exigência de relatórios e conclusões, produções e técnicas, gestos milhões, braços, pernadas, apontamentos. Os olhos enormizados pela convexidade não poderiam devorar nada mais que sua própria parvidez. Es-drú-xu-la. Feito uma mariposa. 

Não havia percebido, pobrezinha. Não se tratava de casulo. Não melhoraria. Não sairia desse invólucro. Estava diante de uma armadilha. Uma rede. Aracnídea.