Eu vivia até certa fase de minha vida aquela letargia imbecilizante de classe média. Vislumbrado aos caprichos da venda de imagem da boa vida, da bonanca primeiro-mundista, da rejeicao às formas, representacoes e realidades desta terra mazomba. Esse fetichismo tao criticado, que favorece um encanto à imagem da funcionalidade, da precisao, do ideal. Uma coisa meio Nabuco. Deve ser por conta disso que fui estudar no exterior, me encantei com essas facilidades contemporâneas de ir e vir, me enveredei nessa proposta germânica.
Digo que superei essa imaginacao conhecendo mais do Brasil. Estou escrevendo sem muito propósito, mais como uma breve descricao reflexiva dos locais aos quais viajei, pertencentes a esse continente de cruz santa e índole papagaial.
Recife. Nao, nao quero falar de praias, tapiocas ou cocos, tampouco tubaroes. Me impressionou o tamanho dos arranha-céus em Boa Viagem, certamente um desses milhares de influxos que toma a concentracao de capital, a composicao de grupos sociais. Fico buscando essa cadeia multi-causal, em que talvez a economia acucareira montada desde a colônia tenha proporcionado. E aí se formam as elites locais, e aí elas querem mais, e aí vêm e vao uns movimentos liberais, até que a marcha industrial se torna inevitável, e o boom dos modelos se prolifera. Ao mesmo tempo em que permanecem barraquinhas escambadas no entorno da universidade.
E resquícios evidentes daquela sociedade descrita por Freyre. Nao é que fui à padaria, na simples intencao de tomar meu desjejum e me deparo com um deles? A proprietária, matrona, gorda e sentada, apenas a contar suas breves notas do caixa. "Seus" funcionários (nao por coincidência, negros), a esquentar leites, servir café, fazer sanduíches de mortadela, limpar o balcao e espantar moscas insistentes. Ainda que as demandas da padaria crescessem vertiginosamente nos breves minutos em que lá estive, a proprietária permanecia inamovível. E os funcionários, todos, a escutarem suas ordens atendendo com um vocativo: -"Senhora?"
Outro ponto desse imaginário e quotidiano resvalados de colonialidade: orgulhou-se uma colega ao dizer que o sotaque pernambucano era o mais próximo ao português luso em toda a regiao nordeste, no sentido de nao se produzir quaisquer sons chiados, quando se pronuncia o "d" e o "t". Ou uma tentativa de resgatar essa língua colonial perdida, mimetismo metropolitano, por parte da atendente da banca de jornais e salgados: "Este salgado, é de quê hein moca?" E ela: -É de queijo e fiambre." Ao que o cliente retruca: "-Queijo e presunto, é?" "-É."
Escapando de anotar, pelas obviedades, a bela paisagem de Olinda, o contraste de céu, mar e coqueiros, ou o casario holandês. As frutas que parecem saciar a interminável sede quase equatorial, caju, cajá, graviola, coco. As identidades que se inventam no espaco urbano: uma cadeia de lojas chamadas "farmácia dos pobres". Um vaivém de homens de regatas, chaves e pochetes, e mulheres com sacolas e saias. E sim, os pernambucanos reclamam do calor, mesmo morando ali desde sempre.
Lugar melhor pra se discutir história colonial nao há.